por Patrick Mariano, especial para o Viomundo
Nelly Senff é uma doutora em engenharia química que em 1975 resolve
sair do leste para oeste de Berlim em busca de uma nova vida com o filho
Alexej, após a morte do namorado. A vida nova na Alemanha Ocidental
esbarra na difícil experiência de morar em um centro de refugiados e nos
intermináveis e torturantes interrogatórios a que é submetida.
Aos poucos, descobre que a burocracia estatal da qual quis fugir e a
insensibilidade impregnada nos procedimentos e processos administrativos
não é muito diferente de um lado a outro. No Ocidente, fica à mercê do
serviço secreto dos EUA que impiedosamente a coloca num jogo cruel de
incontáveis interrogatórios sobre seu namorado. A ação faz com que Nelly
desenvolva o medo e a desconfiança de tudo e de todos, até mesmo sobre a
veracidade da morte do pai de seu filho. O processo pode despertar
quadros paranoicos e isso Kafka bem ilustrou.
Tudo isso se passa no filme Westen (Alemanha, 2013), de
Christian Schwochow. O filme faz parte da nova safra de filmes alemães e
retrata, com profundidade, o drama do sujeito face ao estado. A luta é
desigual e, quando não se dá em conformidade as regras estabelecidas,
causa dor, sofrimento e a destruição do outro.
Nelly fugia de algo que ultrapassava as fronteiras e mal sabia que a
sedução do poder punitivo sem freios é capaz de atravessar regimes e
ideologias políticas.
Vivemos tempos parecidos. Existem algumas semelhanças entre a
personagem do filme e Graça Foster, para além do fato de ambas serem
engenheiras químicas. A personagem brasileira foi condenada sem
julgamento por fatos que sequer participou. Como Nelly, sem sequer saber
do que era acusada, passou meses sendo defenestrada na “opinião
pública”, virou máscara de carnaval e viu, do seu apartamento, dezenas
de pessoas a lhe atacar a honra e a dignidade.
De Foster pode se dizer (embora questionável seja) que não tenha
sabido gerir uma empresa no momento de sua maior crise, mas não é disso
que se trata. As pessoas que foram à sua residência não traziam cartazes escrito: “má gestora”. Entre os inquisidores que foram a rua se ouvia:
“a gente quer que ela abra a boca e conte [o que sabe sobre os
esquemas de corrupção dentro da estatal] e deixe de blindar os
envolvidos. Ela está envergonhando todo mundo”.
E nas janelas, moradores aplaudiam o protesto e gritavam:
“Ô Graça Foster, você vai ver, o seu vizinho tem vergonha de você”.
Aqui há muitas semelhanças com as cerimônias de penitência
(auto-de-fé) ocorridos na península ibérica séculos atrás. As fogueiras
foram substituídas pelas capas de jornais e revistas.
Poucos ali sabiam que Maria das Graças Silva Foster saiu do interior
de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, morou em favela da zona carioca e
chegou a catar papelão e latas para contribuir na economia de casa até
se tornar a primeira mulher a ocupar o cume da maior empresa brasileira.
O enredo de sua vida que bem poderia sugerir uma homenagem de uma
escola de samba, acabou destruído pelo fogo inquisidor. Muitas daquelas
pessoas que lá foram a sua casa, não seriam capazes de fazer um escracho
em frente à casa de um torturador da época da ditadura, mas foram
capazes de insultar uma mulher que foi vítima de injusta campanha
vilipendiosa.
Estamos todos a pequeno um passo midiático de sermos tidos por
corruptos e criminosos. Saiu uma nova delação, mas qual? As capas de
revistas e jornais prescindem de realidade concreta, basta a manchete.
Para justificá-la, apenas se diz que Sicrano envolveu o nome de Fulano
em uma delação premiada e pronto.
Com isso não se está a dizer que crimes devem ser acobertados, nem
que os responsáveis não sejam punidos, mas é que a forma que se vai com
esse processo deixa a todos aqueles que acreditam na democracia
atônitos.
Com louváveis exceções, é preciso dizer que o governo petista nunca
se atentou para o processo penal e as normas legislativas. A realidade é
que se descuidou do direito e do processo penal, assim como das
indicações ao STF. Na parte legislativa o que se viu foi uma ampliação
dos poderes de polícia com a importação de técnicas de investigação de
questionável constitucionalidade. Diante de um congresso ávido por
responder aos anseios da sanha punitiva, não se fez nenhum movimento
político de maior envergadura para freá-lo ou de contraponto.
A indicação de nomes ao Supremo parece obedecer a um único critério:
ministros medianos, pusilânimes e que não entendem de ciência penal, às
vezes até da Constituição. Nesse quadro de completo abandono e na
ilusória esperança de que as leis só atingiriam os “criminosos”, fomos
caminhando a passos largos ao atual estado das coisas.
E não é só no PT, infelizmente. Outros partidos de esquerda aceitaram
o jogo inquisidor contra a corrupção e foram entusiastas de leis mais
duras. A ponto de um colegiado de juízes ter o poder de determinar se um
candidato é ficha limpa ou suja, mesmo que ainda pendente decisão
final.
Nem mesmo os números recentes de que 41% da população carcerária
brasileira é composta de pessoas que sequer foram condenadas em
definitivo – portanto inocentes a teor do mandamento Constitucional –
são suficientes para despertar qualquer debate público mais aprofundado.
Permitimos que se chegasse à feliz citação de Cordero relativa ao
“primado da hipótese sobre os fatos”, com as leis especiais criando
sistemas inquisitoriais próprios, à revelia do próprio CPP e da
Constituição da República. O juiz passa a agir como um delegado de
polícia, assumindo a hipótese da acusação como verdadeira. Com isso, o
processo se torna nada menos que uma tentativa de demonstrar que está
correto (quando não, mero empecilho). Essa atuação antecipa seu
julgamento desde no início.
O problema, como bem diz o professor Rubens Casara é
que “ao partir de uma hipótese falsa, o julgador que adota essa postura
inquisitorial, não raro, chega a uma conclusão falsa, mas que ele
acredita ser verdadeira, mais precisamente, chega a uma “verdade” que
ele construiu, a partir do senso comum ou de distorções, por vezes
inconscientes, do próprio conjunto probatório”.
Isso compromete a imparcialidade e rompe a distância que o julgador
deve manter das versões postas pelas partes, o que resulta num “quadro
mental paranoico”, já que o magistrado decide antes e depois sai em
busca de material probatório para “confirmar” sua versão. Deste modo, se
passou a louvar a figura de juízes justiceiros. E isso foi estimulado,
pois se ouviu de autoridades do STF que os magistrados devem combater a
corrupção. Se o juiz vai combater, quem a julgará?
Os resultados dessa desastrosa política penal refreou a corrupção? A
Lei da ficha limpa alterou a composição do Congresso Nacional e
purificou a política brasileira? A famigerada lei dos crimes hediondos
reduziu as estatísticas de prática de crime?
Todas as respostas são negativas, mas ainda se insiste, pois a sedução de punir sem regras nos acompanha desde muito tempo.
Possivelmente, dessa lamentável execração pública que assistimos
saíra um novo “pacote” de alterações legislativas. Infelizmente, não
para tornar o processo mais democrático e fiel aos princípios
constitucionais, mas sim para dar mais poderes à polícia, aos juízes de
primeiro grau, ampliar o rol de crimes hediondos, inverter o ônus da
prova, aumentar as penas e criar ritos sumaríssimos.
Assistiremos impassíveis, até que um dia tenhamos que nos defender de
uma delação cujo teor não nos será dado acesso, veremos nossos rostos
nas revistas e poderemos nos tornar máscaras de carnaval. Pior é que
nesse caso, sequer poderemos cantar que “todo carnaval tem seu fim”.
Patrick Mariano é
doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na
Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em direito, estado e
Constituição pela Universidade de Brasília, integrante da Rede Nacional
de Advogados e Advogadas Populares-RENAP, do coletivo Diálogos Lyrianos
da UnB e autor do livro 11 Retratos por 20 Contos
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