da Rede Brasil Atual
Atrás do enganoso termo “privatização”,
esconde-se uma campanha pela entrega de setores estratégicos a grupos
internacionais — muitos deles, estatais
por Celso Amorim
publicado
08/01/2018
Marinha dos EUA/Via Medium
Obama defendeu pessoalmente a compra de caça norte-americano Boeing em encontro com Dilma em 2011
Instituto Lula
– De tempos em tempos esquenta no Brasil a discussão sobre as vantagens
das privatizações para a economia do país. A crítica que trago é
justamente ao uso do termo enganoso “privatização” nesta discussão. Ora,
privatizar implica na ideia de que o processo de venda dos ativos do Estado brasileiro significa apenas a mudança do controle do Poder Público para empresas privadas, principalmente nacionais.
Seguramente, num futuro próximo, outros
autores oferecerão ao tema a teoria elaborada que ele merece. Neste
momento, quero fazer uma simples constatação: na verdade, o que se
costuma chamar de “privatização” tem sido um processo de
“desnacionalização”, em que os adquirentes controladores são quase
sempre (se não sempre!) empresas ou consórcios estrangeiros, muitas
vezes empresas estatais de outros países.
O uso do termo “privatização” é um exemplo da
manipulação da opinião pública pela mídia (associada a poderosos
interesses multinacionais). Fenômeno denunciado, em relação a outras
situações, pelo grande linguista, filósofo e ativista político
norte-americano, Noam Chomsky. Uma forma sofisticada de “fake news”.
Caso Embraer-Boeing, por importante que seja, é apenas um exemplo do processo de desnacionalização da nossa economia, cujo controle está sendo transferido, com determinação e rapidez nunca vistos, a interesses estrangeiros
Em teoria, poder-se-ia imaginar que as
“privatizações” beneficiariam empresas de capital nacional, robustecendo
a nossa burguesia. Mas não é assim. Além de não terem cacife para
adquirir setores estratégicos, como o do petróleo, da eletricidade e da
infraestrutura, as empresas nacionais (já combalidas pela verdadeira
guerrilha judicial que triturou sua presença no mercado), perdem uma
base de apoio importante para suas operações, já que, em muitos casos,
seu cliente principal é justamente o Estado brasileiro (em seus vários
níveis).
Embraer: “privatização” de empresa que já é privada
Exemplo eloquente e mais escandaloso dessa corrida pela
desnacionalização — e neste caso sem disfarce — é o da Embraer, empresa
privatizada há algumas décadas, mas sobre a qual o governo manteve algum
controle (sobretudo no que diz respeito às orientações estratégicas)
por meio do instrumento conhecido como “golden share”.
Aqui, não há como falar em privatização, até
porque a indústria aeronáutica em questão já é privada, totalmente
inserida no mercado global e de forma extremamente bem sucedida, diga-se
de passagem. Trata-se, a todo custo, de passar o controle sobre o
parque produtivo e tecnológico brasileiro a interesses não-nacionais. No
caso, esses interesses são representados pela gigantesca empresa
norte-americana Boeing, produtora de aviões civis e grande fornecedora
das necessidades do Estado norte-americano — ou mais precisamente do Pentágono — em matéria aeroespacial.
Completa-se, assim, uma trama, iniciada há
anos, com a tentativa de venda dos F-18 americanos à Força Aérea
Brasileira. Caso efetivada, essa venda teria se constituído em uma
operação comercial, sem nenhuma transferência de tecnologia. Pior que
isso, haveria restrições ao uso da própria tecnologia embutida na
aeronave, com a não abertura do “código fonte”, que condiciona o sistema
de armas. Conforme versão que ouvi de alto funcionário da companhia
brasileira, essa transação já contemplava uma “associação estratégica”
entre a Embraer e a Boeing. Comparando a dimensão das duas empresas
(cerca de 1 para 10 em valor de vendas), não é difícil de imaginar quem
deteria o comando da associação.
Há aí, como em muitas situações
similares, uma distinção essencial a fazer entre os interesses dos
acionistas das empresas e o interesse da nação. A curto prazo, é muito
provável que haja ganhos para os detentores de títulos da companhia a
ser desnacionalizada (para usar o termo correto, não mistificado). Mas
quem perde é o país: em autonomia e capacidade de inovação.
Numa situação com a Embraer controlada pela
Boeing, alguém imagina que, em uma hipotética licitação, a nossa Força
Aérea teria cacife para bancar uma opção eminentemente técnica, como a
que ocorreu na compra dos Grippen, baseada, entre outros fatores, na
transferência efetiva de tecnologia e na autonomia para fazer
modificações que sejam do nosso interesse, como a incorporação de
armamento brasileiro, sem falar na possibilidade de acessar mercados em
países em desenvolvimento, especialmente na América Latina? É obvio que
não. Nossa “escolha” estaria determinada de antemão.Teríamos que “optar”
pelo avião produzido pela Boeing e sujeitar-nos às condições que fossem
impostas pelo governo norte-americano ou pela própria empresa.
Neste caso, a ligação entre os setores civil e
militar não é apenas financeira (com os lucros das vendas para a
aviação comercial ajudando a pagar os investimentos da área de defesa,
como apontou Pedro Celestino, em excelente texto). Ela é também de
natureza técnica e industrial. Foi o aprendizado com a produção do AMX
(em parceria com a Itália) que alavancou a produção dos jatos regionais,
que tornaram a Embraer uma marca mundialmente conhecida e respeitada.
Afora o aspecto empresarial, um mínimo de seriedade obrigaria a um
estudo das implicações geopolíticas da operação planejada.
Em breve, pouco restará, em termos de ativos
industriais e econômicos, que poderão ser chamados de brasileiros. Como
certa vez, um filho meu perguntou, já há alguns anos diante de uma placa
em grandes letras: “Pai, por que quando a gente lê “do Brasil” (em
sequencia ao nome de uma empresa), significa que aquilo não é do
Brasil?”.
Há povos que se ressentem de não terem se
transformado em Estados. Em breve, seremos um caso parecido: o de um
povo sem Nação. E tudo em nome de uma pretensa eficiência, que só
beneficia, além dos compradores e seus governos, os felizardos
miliardários que se tornam acionistas minoritários de grandes consórcios
multinacionais. Pobre Brasil!
Celso Amorim é
diplomata de carreira e serviu como ministro das Relações Exteriores nos
governos Itamar Franco (1993-1994) e Lula (2003-2010) e como ministro
da Defesa no governo Dilma Rousseff (2011-2014). Em 2009, foi eleito
pela revista Foreign Policy como “melhor ministro das Relações Exteriores do mundo”.
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