Natasha Pitts
Adital
A comunhão entre a
vida de Dom Hélder Câmara e suas pregações é seu maior trunfo contra os que o
acusam de ter sido demagogo. A afirmação é da professora Lucy Pina Neta, historiadora
do Instituto Dom Helder Câmara (IDHeC), sediado em Recife, Estado de Pernambuco.
Em entrevista à Adital, ela discute o
contexto sociopolítico e cultural que permeou a atuação de Dom Hélder e que fez
dele uma referência ainda bastante atual para as novas gerações.
Segundo ela, para
além dos muros da Igreja Católica, o trabalho de Dom Hélder alcança grandes
proporções, atuando em especial pela promoção e respeito ao ser humano. Tal
postura fez com que o sacerdote deixasse uma marca indelével no serviço ao
próximo, em defesa dos direitos básicos e dos mais necessitados, no qual se
considera que existe a presença de Jesus Cristo.
A historiadora
destaca que seu trabalho nos bastidores ajudou a tecer a trama que deu uma nova
roupagem à Igreja Católica, articulando diferentes realidades sociais, políticas
e culturais. Por isso, a figura de pastor que se soma às ovelhas em fraquezas e
virtudes é a que mais inspira as atuações sociais e pastorais. Dom Helder, para
Lucy Pina Neta, contribuiu para que, hoje, o Papa Francisco possa reviver um
modelo de Igreja mais humano e verdadeiramente cristão.
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Lucy Pina Neta é historiadora do Instituto Dom Helder Câmara (IDHeC). Foto: Arquivo pessoal. |
ADITAL - O que a figura de Dom Hélder Câmara representa,
hoje, dentro e fora da Igreja? Quais são seus aspectos mais marcantes?
Lucy Pina - Dom Hélder é atual. Embora, para
compreendê-lo, é sempre necessário lê-lo em seu contexto sociopolítico-cultural
e, sobretudo, eclesial. Isso nos leva a reconhecer o quão visionário (ou
profético) ele foi, desde suas primeiras atuações sociais até os últimos anos.
A coerência entre sua vida e suas pregações é seu maior trunfo, contra os que o
acusam de ter sido demagogo. Dentro da Igreja, uma lembrança recorrente
associada a seu nome é a colegialidade, um modelo de gestão democrática que tem
recebido certa notoriedade com o pontificado do Papa Francisco.
A colegialidade que
ele traz de sua formação no Seminário da Prainha [em Fortaleza, Estado do
Ceará] e que ele consolida durante suas experiências sociais e pastorais em
todas as fases de sua vida, que ganha forma institucional com a ideia da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), se pensarmos a Igreja
brasileira e os trabalhos realizados durante as sessões do Concílio Vaticano II
[realizado em 1962] com os padres conciliares da América do Sul, Ásia, África e
parte da Europa, quando tomamos a dimensão da Igreja Católica mundial. Isso não
esgota, absolutamente, sua representação, mas são exemplos claros da
colegialidade a que me referi no começo, como aquela que classifico como a
marca ou, melhor dito, como a memória mais recorrente associada à imagem de Dom
Hélder.
Para além dos muros
da Igreja, o trabalho do Dom Hélder alcança grandes proporções, seu empenho
pela promoção e respeito ao ser humano — aqui se entenda a criatura criada à
imagem e semelhança de seu Criador, não importando credo, cor, raça, nacionalidade
ou qualquer outra forma de classificação. Chama a atenção um aspecto próprio da
formação recebida no Seminário da Prainha, à época dirigido por padres
lazaristas, seu trabalho social.
Esses trabalhos
produziram no jovem Hélder uma marca indelével, como ele mesmo dizia, "padre
não existe no vácuo. Só existe padre para a glória de Deus, servindo ao próximo”.
Este serviço consistiu em resguardar a dignidade humana, no respeito a seus
direitos básicos, na luta em defesa dos mais necessitados, no amor ao Cristo
que vive no pobre, na necessidade sempre presente de lembrar, a todo instante,
a presença viva de Jesus.
Nesse sentido, justificam-se
as memórias feitas aos seus trabalhos junto aos operários e professores
católicos, no Ceará, à frente da Cruzada de São Sebastião e do Banco da
Providência, no [Estado do] Rio de Janeiro, e todos os seus esforços empenhados
em acudirem as vítimas das cheias do rio Capibaribe, trabalhadores rurais e
presos políticos, em Olinda e Recife [Pernambuco].
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Era forte a atuação de Dom Hélder nos bastidores da Igreja. Foto: Reprodução. |
ADITAL – Você poderia falar sobre a importância da
atuação de Dom Hélder durante o Concilio Vaticano II?
LP - Não acredito ser possível escrever a
história do Concílio sem, ao menos, mencionar o nome de Dom Hélder. Embora ele nunca
tenha falado durante as sessões conciliares, seu trabalho nos bastidores ajudou
a tecer a trama que deu uma nova roupagem à Igreja Católica. Seu empenho pode
ser dividido em três fases distintas e complementares: os trabalhos
pré-conciliares, como consultor da Comissão dos Bispos e do Governo das
Dioceses, e na organização do episcopado brasileiro para a
viagem à Roma, providenciando documentos pessoais e passagens para que a Igreja
do Brasil comparecesse com o maior número possível de padres conciliares.
Depois, já durante o Concílio, seu trabalho é classificado como o de um
articulador de bastidores. Entre as sessões conciliares, Dom Hélder promoveu
reuniões menores na residência do Episcopado brasileiro em Roma, a Domus Mariae. Seu objetivo era trazer
até os padres e bispos, não só os brasileiros, mas todos os que assistiam a
essas reuniões, os melhores elementos para discutir a nova proposta de Igreja
anunciada por João XXIII e seguida por Paulo VI, corroborando a tese de que, além
de um formador de espíritos, Dom Hélder também foi um formador de intelectos.
É claro que seu
trabalho está para além dessas reuniões. Ele teceu, não sozinho, uma teia de
relações, que possibilitou aos episcopados dos cinco continentes pôr sobre a
mesa seus problemas e, juntos, construírem suas soluções. Este é um assunto que,
naturalmente, não se esgota nessas palavras (...). Mas, em linhas gerais, eu
considero essas duas marcas, a colegialidade e capacidade de articular com diferentes
realidades sociais, políticas e culturais.
ADITAL - Qual a influência do Pacto das Catacumbas em
sua vida religiosa e pastoral?
LP - O Pacto [documento redigido e assinado por
40 padres participantes do Concílio Vaticano II, no dia 16 de novembro de 1965,
pouco antes da conclusão do Concílio, que continha 13 itens, com os signatários
comprometendo-se a levarem uma vida de pobreza, rejeitar todos os símbolos ou privilégios
do poder e a colocar os pobres no centro do seu ministério pastoral, entre outros
pontos] se traduziu na experiência de vida de Dom Hélder. Em suma, o documento
fala sobre a necessidade de uma Igreja pobre e servidora, que começa a partir
de seus bispos, que devem abrir mão do título de "Príncipes da Igreja”, e, por
conseguinte, de tudo o que ele representa: palácios, carros oficiais, contas em
bancos, para citar os exemplos mais recorrentes.

Por isso, a
primeira imagem que vem a cabeça quando pensamos em Dom Hélder é a de um bispo
franzino, de batina bege, com uma cruz simples pendurada no pescoço. Isso o
traz para perto de seu rebanho; nele, a figura de admistrador eclesiastico é
ofuscada pela, sempre mais aparente, figura de pastor, que se soma às suas
ovelhas em fraquezas e em virtudes.
Outra marca dessa
vivência é a forma como nós o chamamos: "Dom”. Assim, simples, uma vez perguntado
porque as pessoas o chamavam assim, ele respondeu que alguém nos soprou que "dom”
era uma fineza, um presente de Deus, e que ele era nosso presente. Quiçá ele
tivesse razão; em obscuros anos de repressão, ele tenha sido realmente essa
luz, esse dom para a Igreja do Brasil.
Se pensarmos do
ponto de vista pastoral-social, caímos num campo bastante amplo. Dom Hélder, ao
propor a reforma agrária a governos e até a segmentos da Igreja, não a faz
apenas como uso de um tema que começava a se tornar popular, mas como alguém
que já havia experimentado os alcances práticos, fazendo ele mesmo, seja com
terras da Arquidiocese de Olinda e Recife, seja destinando dinheiro de prêmios
que ganhou pelo mundo, para a compra de áreas agrícolas, relativamente próximas
as cidades, e as redistribuindo entre os trabalhadores do campo. O Pacto [das
Catacumbas] se tornou uma espécie de segunda regra de vida!
ADITAL - Como Dom Hélder se relaciona com a Teologia da
Libertação?
LP - Eu, sinceramente, não consigo ver Dom Hélder
como um teólogo da libertação. Mas reconheço que há, sim, traços do modelo de
Igreja que ele viveu, desejou e sobre o qual escreveu que permeiam a teologia
da libertação. Mas não saberia lhe dizer mais sobre o tema.
ADITAL - Por que a espiritualidade helderiana vive e é
significativa e atual ainda hoje?
LP - Há sobre Dom Hélder dois tipos de
memórias: uma afetiva, geralmente associada ao grupo de pessoas que viveram com
ele ou próximas a ele. O que reforça um saudosismo do bom pastor, de sua forma
humanizada de experiência de igreja. Esse tipo de memória é importante; ela faz
com que as gerações que não conviveram fisicamente com ele se interessem, que o
busquem.
Grosso modo, é como
se fizessem uma grande propaganda boca a boca da melhor experiência que já
tiveram e, logo, a curiosidade brota e daí o interesse sempre recorrente pela
figura de Dom Hélder. A outra memória vem, exatamente, desse grupo que se
aproxima pelo "ouvir falar” e encontra a coerência entre as memórias, a
documentação e a vida de Dom Hélder.
Seu maior trunfo
para continuar atual é que ele foi real, foi verdadeiro, seus pecados são
confessados ou, melhor dito, assumidos; suas fraquezas são humanas, seu amor
pela Igreja se traduz num amor que vê a Cristo no irmão. Por isso sua
espiritualidade não "cai de moda”.
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Dom Hélder foi liderança também no trabalho social. Foto: Reprodução. |
ADITAL - A chegada de Jorge Mario Bergoglio, o Papa
Francisco, para ocupar a chamada "cadeira de São Pedro” é um impulso para o
resgate e fortalecimento das ideias defendidas por Dom Helder?
LP – Particularmente, eu tenho muitas
esperanças! Acho que Francisco, à sua maneira e a seu tempo, tem mostrado que é
possível reviver, em parte, o modelo de Igreja que Dom Hélder viveu na segunda
metade do século passado. Fico feliz por minha geração, que lotou a Praia de
Copacabana [no Rio] para ouvir as palavras do Santo Padre, que se inspira em
Francisco para uma Igreja mais pobre, mais servidora, mais humana e mais
próxima. Espero que ele viva por muitos anos para alcançar fazer as
transformações possíveis dentro da Igreja.
ADITAL - O livro "Novas Utopias”, ditado pelo espírito
de Dom Hélder e psicografado pelo médium Carlos Pereira, da Sociedade Espírita
Ermance Dufaux, de Belo Horizonte (Estado de Minas Gerais) é reconhecido como
uma obra do religioso?
LP - Pelos adeptos da doutrina espírita e pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
ADITAL - Alguns historiadores e jornalistas descrevem
Dom Hélder não apenas como uma figura popular, mas sim exibicionista, que
gostava de estar em frente às lentes dos fotógrafos, além de ser portador de
uma vaidade brutal. De onde vem isso?
LP - Talvez eu não esteja apta a responder esta
última pergunta, pois não vejo Dom Hélder dessa forma. O que posso lhe dizer é
que a censura nos meios de comunicação causou a ele muita pena, que as notícias
falaciosas o lastimaram; e que não poder respondê-las o fez sofrer. Apesar dessa
fase, sua relação com os meios de comunicação foi respeitosa; ele sempre soube
o alcance de um microfone e uma câmera. Por isso, ao fazer uso deles, tinha
muito cuidado. Mas a vaidade é própria de nossa condição humana e algumas
coisas que contam sobre ele, se não são verdade, ele as toma como anedotas para
ensinar alguma coisa.
Colaborou Marcela
Belchior.
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