sábado, 17 de março de 2012

Estou à disposição de Caetano no processo contra Odebrecht, diz Gilberto Gil

Bob Fernandes e Claudio Leal
De Salvador (BA)
Na segunda parte da entrevista exclusiva a Terra Magazine, o compositor Gilberto Gil elogia os discos recém-lançados de Chico Buarque e de Gal Costa (“Recanto”, com canções de Caetano Veloso, produtor do álbum ao lado de Moreno Veloso). Declarando-se um “peladeiro” musical, Gil analisa a personalidade de João Gilberto, critica os “bate-estacas incultos” e explica por que deseja escapar das cobranças da indústria fonográfica por novidades.
- Eu não quero muito fazer nada de novo. Pra rever, pra reler, pra requalificar, pra reabilitar coisas. Nós somos artistas que temos, cada um de nós, 500 músicas que foram jogadas no colo do mundo. Na lógica industrial, cem delas viveram – avalia Gil.
Um dos principais artistas e agitadores do Tropicalismo, o músico declara apoio a Caetano Veloso na briga judicial contra a construtora baiana Norberto Odebrecht, que decidiu “homenagear” a Tropicália no batismo de um condomínio de luxo no litoral de Salvador, próximo ao Parque de Pituaçu. A Odebrecht é acusada de fazer “uso comercial” do ideário do movimento cultural irrompido nos anos 60, associando-o, na leitura de Caetano, à explosão imobiliária que muda o perfil da orla atlântica e que atinge áreas verdes da capital baiana.
- Caetano tem toda razão. Há essa volúpia da apropriação, da agregação de valor indiscriminada, utilizando tudo que possa estar à mão, sem nenhum critério de respeito – critica Gilberto Gil, que relata uma conversa com o amigo: – Quando nós conversamos a respeito dessas coisas todas, eu disse a ele: “Estou à disposição. Se você for fazer um movimento mais contundente, no sentido de judicializar a questão, qualquer coisa desse tipo, estou com você.”
Em sua coluna no jornal “O Globo”, Caetano afirmou que, em respeito à memória de Nara Leão, tentará dissuadir a Odebrecht de cravar o nome “Tropicália” no conjunto de oito prédios luxuosos. “Um condomínio fechado, como parte do modo desregulado como vem se dando o crescimento da Cidade do Salvador, não condiz com nosso trabalho: nem o meu, nem o de Tom Zé, nem o de Gil, nem o de Rita, nem o dos irmãos Baptista, nem o de Duprat – nem o de Nara”, sustentou o tropicalista, que também denunciou o risco de os espigões projetarem sombra na areia: “Salvador, que teria tudo para ser uma joia, deve ao menos poder manter suas praias ao sol.”
Confira a segunda parte da entrevista de Gilberto Gil.
Terra Magazine – Além dos afetos, dos amores, da família, o teu olhar hoje é para o quê, Gil?
Gilberto Gil - Eu gosto de música…
Então fale de música…
Eu gosto de música, de tocar violão, de cantar, de inventar, de reinventar, de reler coisas, de prestar atenção. Mas não dá para prestar atenção em todas as coisas que são colocadas à mesa.
Muito lixo?
Lixo reciclável, lixo orgânico…
Lixo exportado!
Lixo que não serve pra nada, mas lixo que pode se tornar húmus para outras coisas. Mas é principalmente a questão da quantidade. Lixo se caracteriza pela extraordinária quantidade. O problema do lixo não é mais da qualidade, do mau cheiro, da podridão, do que não serve mais pra nada. Esse não é o problema do lixo. O problema do enfrentamento do lixo é a quantidade. O lixo se tornou uma coisa enorme. Essa que é a grande questão. Por isso eu citei a palavra reciclagem, me referindo à própria questão da música, da produção musical hoje no mundo. Dos benefícios, mas também das grandes perdas ocasionadas pelo digital, pela internet.
A questão do midi, por exemplo, essa nota musical que foi inventada para os teclados e depois passou outros instrumentos. Hoje está nos fones, nos ringtones, em tudo isso. O midi que resolveu dizer a tonalidade, o tom da voz da natureza, dos pássaros, das pessoas, dos bichos. Ela pode ser condensada e enquadrada num pacote matemático, numerificado e etc. Trouxe benefícios incríveis, porque você pode espalhar toda uma outra acessibilidade à execução, ao exercício da musicalidade, através de vários instrumentos eletronificados, digitalizados. Mas, ao mesmo tempo, aquilo ali é uma camisa de força, engessa um bocado de coisa. Toda aquela música que era manifestada através de uma fluidez natural das vozes humanas, das vozes da natureza, dos instrumentos musicais, o “coma” musical, como a gente diz… Aquela microtonalidade que envolve, involucra o ambiente, tudo isso tende a se perder. No ritmo, a mesma coisa. As máquinas digitais acabaram, enfim, nos levando a esses bate-estacas incultos! (risos) Porque é…
Que bom ouvir essa palavra, “inculto”, que todo mundo evita. Você viu o filme do Nelson Pereira dos Santos sobre Tom Jobim (“A Música Segundo Tom Jobim”)?
Ainda não vi. Tive comentários porque conversei com Jaquinho Morelenbaum (violoncelista e maestro) sobre o filme.
Ele gostou?
Gostou muito. Na coisa do cinema, é um pouco na linha do filme “O artista”, né? Que é mudo. Preto e branco, e mudo. Esse daí é mudo de outras linguagens, só tem a música. (risos)
Ele é a reafirmação de um tipo da cultura brasileira? Tem um caminho ali, é como se recuperasse uma ideia do Brasil.
É, que aquela turma de Tom manifestou de forma extraordinária, magnífica. Tom, João (Gilberto), Vinicius, Baden (Powell), (Carlos) Lyra, (Roberto) Menescal, todos esses meninos que fizeram a Bossa Nova e que deram essa qualidade. Recrutaram, garimparam elementos das variedades eruditas, que vão desde o clássico até o jazz, passando por tanta coisa. Eles trouxeram esse mundo pra cultura do Brasil. O estágio anterior tinha sido Villa-Lobos. Mas esse grau de trazer as erudições para o canto popular, para a expressão popular, Jobim leva isso às últimas consequências. Jobim e João. Um filme como esse recupera essa importância.
Agora, não precisa haver algo nessa linha em relação a João Gilberto? Recentemente, uma turnê dele foi desmarcada e a reação das pessoas e da imprensa à figura de João Gilberto chegou a uma agressividade que não tem nada a ver com o universo joão-gilbertiano, com essa delicadeza. Como você avalia a presença da personalidade de João Gilberto no Brasil?
É uma personalidade de difícil encaixe nesse mundo que a gente está descrevendo, de tanta incultura (risos). O mundo nessa brutalidade do numerismo, do digitalismo…
Dos ataques anônimos.
Do anonimato, da igreja cibernética. É difícil, porque ele não oferece encaixe. Há personalidades que são do holismo absoluto, são a visão da reunião de tudo, são a sensibilidade mais profunda. João é isso. Além do mais, com uma dimensão comportamental também. Mesmo dentro dos padrões do acolhimento maior que o holismo possa ter, mesmo dentro disso, ele ainda é de uma particularidade maior. (risos) Ele é recolhido… Não é uma pessoa como eu que foi pro mundo, que estudou Administração, que foi se meter com autogestão, se meter com a política, viver a porosidade mundana, deixar-se infiltrar pelos húmus, pelas águas do mundo! João é recolhido, idiossincrático.
Ele adora Romário, e tem um ponto em comum com ele, que é extrair o máximo do mínimo.
Como gostava do Joe Frazier (boxeador), né? Claro que ele tinha admiração por Muhammad Ali, etc., mas o preferido dele era Joe Frazier (risos).
Qual foi seu último contato com João Gilberto?
Faz muitos anos, muitos anos… Há cerca de dois meses atrás, eu tive a oportunidade de estar com a companheira dele…
Claudia Faissol.
A Claudia. E eu mandei um recado: “Eu preciso falar com ele”. E é uma questão minha, pro meu próprio governo, pro meu próprio encaminhamento, pras coisas que eu quero fazer. Eu preciso falar com ele. É uma consulta!
Uma hora soará o telefone.
É uma consulta que eu quero fazer! Doutor João, vim aqui no seu consultório! (risos) Aí eu espero que ele honre o juramento a Hipócrates e me receba como paciente! (risos) Preciso de uma consulta do João.
Claro, você deve ter ouvido o último disco de Chico Buarque e, agora, o disco de Gal Costa, produzido por Caetano Veloso…
Ouvi!
São discos que estão em descompasso com o que as pessoas esperam deles?
Eu disse! Estão em descompasso com o próprio conjunto…
Com a própria tradição em que estão inseridos?
É. São discos que querem reinvestir, reinventar, resistir. Resistir no sentido de resistência e de re-existir. Querem uma resistência e uma re-existência. Caetano já vem fazendo isso desde “Cê”. Se quisermos, a rigor, desde “Estrangeiro” (1989), mas mais radicalmente a partir do “Cê”. Agora, o disco com a Gal…
Radicaliza?
É um desdobramento disso. O disco de Chico também. Ele também já vinha, no sentido de se você observar as harmonias, o modo como se relacionam melodias e harmonias e ritmos na composição.
Isso vem do desencanto de Chico com o formato da canção?
Com o formato da canção. Ele disse que, possivelmente, a canção estaria em vias de extinção. Mas, na verdade, o que ele diz é: ela pode estar acabando, mas eu me acabo com ela (risos).
Pode acabar, mas eu vou junto!
Chico sempre foi muito modesto no sentido de como ele encara o mundo da musicalidade. Ele sempre foi muito simples. Ele não saberia… Até saberia, porque é tão inteligente, tão culto, tão informado, tão sensível, um artista tão poderoso no sentido dos poderes próprios da arte, que ele poderia fazer. Mas ele não quer. Por isso ele foi rareando as intervenções. De ano em ano, depois de dois em dois anos, depois de três em três anos, agora de cinco em cinco anos. Tem tido o refrigério da literatura, que mantém a casa amena. Ele não sente nem muito calor nem muito frio. Fica ali temperado pela literatura. Fui ver o show dele, no Rio. Uma beleza, uma beleza…
E você?
Eu não, eu já venho fazendo uma coisa que os meninos do Monobloco, com quem fiz um show em Brasília… No final do show um deles virou pra mim e disse assim: “Poxa, Gil! Eu já achava que você era um pouco assim, mas hoje eu tive a comprovação: você é peladeiro mesmo!” (risos) Sou peladeiro.
É do baba.
Gosto do baba, de jogar as peladas, enfim, eu não preciso… Passei esses últimos anos todos revisitando minha própria obra, revisitando Gonzaga, as coisas nordestinas. Há uma cobrança típica da pós-modernidade, desses tempos de hoje, com essa volúpia transformatriz, com essa volúpia pela aceleração (“vamos adiante, mais pra adiante”), com um adiante conhecido, com uma obsessão pela cognição do avanço, do significado do avanço… É uma cobrança pra gente como eu, como Caetano, como Milton (Nascimento). Essas novidades…
“Nunca mais fez nada de novo”.
Nunca mais fez nada de novo e tal… Eu não quero muito fazer nada de novo. Pra rever, pra reler, pra requalificar, pra reabilitar coisas. Nós somos artistas que temos, cada um de nós, 500 músicas que foram jogadas no colo do mundo. Na lógica industrial, cem delas viveram. Foi mesmo que espermatozóide. Várias chegaram, só algumas entraram. Os lados B todos dos discos que fizemos, quase todos se perderam. Metade do lado A e os lados B todos são desconhecidos. Talvez há 20, 30 anos atrás as pessoas tenham escutado um pouco algumas daquelas músicas, quando escutavam os discos em casa. Mas se perderam, não ficaram no rádio. As rádios só reproduzem, basicamente, algumas em especial, com um viés de mais atenção ao repertório geral. Algumas ainda foram atrás, mas a rádio funcional, a rádio industrial só vive da novidade. “Cadê, não tem disco novo, não tem lançamento?”. Eu quis um pouco escapar disso. E ainda vou manter essa escapada durante um tempinho.

Na última década, você se reaproximou bastante de Luiz Gonzaga. O que isso representa para sua carreira? No início de sua vida no Rio de Janeiro, nos anos 60, você teve choques constantes em defesa de Luiz Gonzaga. Uma vez você chegou a sair chorando de uma discussão…
…De uma discussão com colegas…
Sim, porque eles achavam Luiz Gonzaga folclórico.
É, de gente chegar pra mim e dizer: “Não, nós somos adeptos do Tom Jobim. Gonzaga, não. Até (Dorival) Caymmi a gente vai”.
Gonzaga era quase o “arrocha”.
A conversa era essa. Eu tive conversas desse tipo. O que os impelia, o que os incitava, o que os informava no sentido de admitir essa rejeição a Gonzaga, era essa convergência dos eruditismos que a Bossa Nova, de uma certa forma, processou. Era uma coisa assim: tudo que não estivesse nessa percepção de aprofundamento, de avanço harmônico e melódico, de texto, da palavra, da poesia na música, da palavra cantada, estava numa dimensão “folk”. Era uma ingenuidade “folk”. Ou aquilo que se diz em pintura…
O “naïf”.
O naïf. Gonzaga era naïf! (risos)
Houve uma coisa que não tem nada a ver com Gonzaga, mas tem a ver com o popular que é reabilitado. Wando, por exemplo, após a morte.
Por aí você vê. O cuidado que, de repente, as elites jornalísticas tiveram que ter para dizer: não, peraí, vamos repor esse negócio aí.
Os cadernos culturais se comportam como uma “academia” em relação aos músicos?
Olha, é difícil dizer. Mas, ao mesmo tempo, os meninos da crítica musical, assim como os meninos da crítica literária ou das artes cênicas, eles todos se permitiram – e é louvável que tenham feito – a uma visão eclética, a um certo ecletismo. Se por um lado pode ter impactos na crítica aos produtos do seu próprio saber, da sua própria territorialidade, por outro ganha no todo. Eles ficam numa certa medida mais cultos. Ficam mais cultos, mais aculturados.
Você percebe pelo que lê? 
Pelo que eu leio! Pelo que eu leio dos meninos do “Globo”, da “Folha”, da “Carta Capital”, de todos.
Talvez falte apenas mais espaço para essas competências?
É. De uma certa forma, essa própria compartimentação de setores para observação critica está perdendo espaço no campo jornalístico, no modo de ser da atividade.
Mas isso não pode obrigar a crítica a resistir nos espaços que não são da velocidade? Não é uma forma de competir com essa velocidade?
Ah, sim, meter o pé no freio, desacelerar. Um pouco. Eu tenho a impressão de que é a tendência. Agora, de novo, a velha história. Fica aquela questão que os ecologistas trouxeram de forma muito pertinente nos últimos tempos: “Vai dar tempo?”. Essa é a grande questão. Não estaríamos já tão acelerados que não teríamos mais condições de pisar o pé no freio sem capotar? Essa é uma pergunta que eu cada vez me faço mais. Os adeptos do conservadorismo produtivista, industrialista, etc., tentam encobrir, mas as especulações que a ciência vem fazendo na moita, em relação a essa questão global, do ponto de vista ecológico, mostram que tanto do ponto de vista ecológico, como do ponto de vista sociológico, econômico, nós estamos numa…
Encruzilhada?
Não, a gente tá numa enrascada! Na encruzilhada, você diz: eu ainda vou pro lado ou pro outro, estou andando! Na enrascada você está meio preso, numa travada braba, acelerou tanto, ia tão picado que não viu a encruzilhada! (risos) Vai ter que voltar atrás.
Ao falar do meio ambiente, voltamos ao começo da conversa, à discussão sobre Salvador, às agressões que o crescimento imobiliário provoca na cidade. Salvador está quase numa enrascada, no tamanho que está? 
Está, tá dando um nó. A população de Salvador percebe isso no sentido mais corriqueiro da observação. A gente está preso, a cidade está dando um nó. Recife está dando um nó.
Gil, como você vê a questão judicial de Caetano Veloso contra a Odebrecht, por ter batizado um condomínio de luxo como “Tropicália”, em Salvador? Caetano levanta uma questão até mais profunda sobre a proliferação desses condomínios fechados…
Caetano tem toda razão. Há essa volúpia da apropriação (da música e do movimento “Tropicália”), da agregação de valor indiscriminada, utilizando tudo que possa estar à mão, sem nenhum critério de respeito… Caetano tem toda razão.
Um prédio se chama “Divino”, outro “Maravilhoso”, uma canção feita por vocês… Que tal?
Pois é. Até Caetano, quando nós conversamos a respeito dessas coisas todas, eu disse a ele: “Estou à disposição. Se você for fazer um movimento mais contundente, no sentido de judicializar a questão, qualquer coisa desse tipo, estou com você.”
A questão de Caetano é um micro-enfrentamento a tudo que nós falamos no começo? 
Foi o que eu disse no início! Isso só está no nivel de cada um. Cada um pode fazer essa contribuição, essa tomada de consciência.
Bem, é isso. É bom conversar sem pauta, né? 
Eu prefiro conversar assim. Pautar, hoje em dia? Para quê? Na medida em que a gente já percebe a interconexão de tudo, nada mais está solto, ninguém é mais autoridade, está tudo permeado. A pós-modernidade tem que ser enfrentada por todos. Ela não livra ninguém!

Nenhum comentário:

Postar um comentário