sábado, 17 de março de 2012

Commodities versus manufaturas

David Kupfer
Já há alguns anos o tema da desindustrialização vem motivando um amplo debate na sociedade brasileira. Provavelmente, o fato econômico que forneceu a moldura inicial para esse debate foi o crescimento das importações de bens manufaturados que acompanhou a inflexão para a apreciação cambial do final de 2004.
Posteriormente e, particularmente após o choque deixado pela crise financeira internacional de 2008, a preocupação com a competitividade microeconômica da indústria brasileira começou a ganhar espaço, trazendo novos contornos para a discussão. O aumento da importância da dimensão estrutural nessas novas condições de contorno vem mobilizando amplamente os economistas, de modo que os estudos de maior fôlego que são necessários para elucidar o tema estão começando a se tornar disponíveis.
E por que esses estudos de maior fôlego se fazem necessários? Uma razão está circunscrita ao âmbito estritamente positivo da questão. De acordo com a definição consagrada na literatura, desindustrialização nada mais é do que uma redução permanente (não cíclica) da participação da indústria no emprego total de uma economia. Uma variante cada vez mais usada busca relacionar o conceito à redução da participação da indústria não no emprego e sim no valor adicionado (PIB).
A troca da variável de medida parece plenamente justificável devido à crescente dificuldade de interpretação do efeito líquido sobre a estrutura produtiva da adoção de técnicas e métodos de organização da produção fortemente poupadores de mão de obra, em curso na atualidade. Contudo, introduz um novo componente tão ou mais difícil de analisar: os preços, incluindo os termos de troca de serviços versus bens e, dentre esses últimos, de commodities (bens agrícolas, minerais e semimanufaturados) versus manufaturas.
Não é sem razão que a participação da indústria no PIB brasileiro segue trajetórias tão discrepantes se calculada em valores correntes ou constantes. De acordo com dados do Ipeadata disponíveis para os últimos 60 anos, não ajustados para as diversas mudanças metodológicas introduzidas no sistema estatístico nacional no período, verificou-se, em valores correntes, uma queda de um máximo de cerca de 35% em 1985 para cerca de 15% em 2009, com a maior parcela da queda tendo ocorrido na década de 1990. Já em valores constantes, houve queda de um máximo de cerca de 21% em 1977 para cerca de 16% em 2009, com a maior parte da queda tendo ocorrido na década de 1980.
Porém, a principal razão que exige um mergulho mais profundo no tema da desindustrialização está no âmbito normativo e, portanto, não se esgota na mera averiguação da evolução do peso da indústria na composição estrutural do PIB ou do emprego. Para enfrentá-la, torna-se necessário considerar as causas concretas do processo de desindustrialização e contrastá-las com tendências esperadas de mudança estrutural que parecem acompanhar o desenvolvimento econômico das nações.
Sabidamente, pelo lado da demanda, a maior elasticidade-renda dos serviços frente aos produtos industriais faz com que, com o aumento da renda da população, a demanda dos primeiros cresça mais rapidamente que a dos segundos. Pelo lado da oferta, o crescimento da produtividade mais pronunciado na atividade industrial do que nos serviços altera os preços relativos, barateando os primeiros frente aos segundos. Em ambos os casos, o peso da indústria tende a se reduzir, mas esse tipo de desindustrialização é interpretado como um fenômeno “natural”, um processo benigno que reflete o enriquecimento da sociedade e contra o qual nada se pode e, muito menos, se deve fazer.
Diferente é quando essas tendências afetam negativamente a competitividade da produção doméstica, seja por meio do deslocamento das exportações do país no mercado internacional, seja pela substituição da produção industrial nacional por produtos importados. Nesses casos, a perda de competitividade deve ser tratada como sintoma de alguma patologia. Dessas, as mais conhecidas são a doença de custos, caso em que o canal de transmissão se dá pelo aumento dos custos salariais em decorrência do encarecimento dos preços dos serviços (serviços versus bens) ou a doença holandesa, caso em que a erosão da competitividade se dá pela valorização cambial trazida pela especialização do país em produtos baseados em recursos naturais (commodities versus manufaturas).
Enquanto o entendimento mais preciso da direção e da intensidade do processo de mudança estrutural em curso no Brasil ainda está em construção, é interessante colocar em perspectiva uma ideia que, embora não pertença ao tema acima discutido, volta e meia, atravessa o debate no Brasil: a noção de que uma redução prévia do peso da atividade industrial pode ser desejável como requisito para uma expansão posterior. Geralmente manejado em defesa da abertura comercial, essa ideia apoia-se na hipótese de que o acesso a tecnologia incorporada em insumos e bens de capital importados, ao propiciar uma maior competitividade dos produtos finais, pode ser condição necessária e suficiente para garantir a melhor trajetória possível de desenvolvimento industrial. O problema é que esse resultado favorável somente ocorrerá se a produção dos bens finais for capaz de adicionar mais valor do que o montante contido nos bens importados utilizados em sua elaboração. Mesmo com os preços dos bens exportados pelo país nas alturas, isso é justamente o contrário do que vem sendo a tendência predominante no Brasil.
David Kupfer é professor e membro do Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da UFRJ (GIC-IE/UFRJ) e assessor da presidência do BNDES. Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br). As opiniões aqui expressas são do autor e não necessariamente refletem posições do BNDES.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário