domingo, 5 de junho de 2011

Agências reguladoras e democracia

Carlos Lessa (professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do BNDES)
Valor Econômico. São Paulo,
31 de maio de 2011.

Quero relatar vicissitudes, como cidadão, com a Light. Tenho uma obra próxima da
inauguração. Obviamente a planta do prédio foi aprovada pela Prefeitura do Rio de
Janeiro, mas existe um poste da Light com fiação perigosa, praticamente no meio da
entrada da garagem, em uma calçada estreita. Em 7 de dezembro passado, protocolei
na Light um pedido de remoção de poste e rede. Desde essa data, apesar de estar disposto a pagar pela remoção (é necessário um deslocamento de 3 metros), não consegui sequer receber orçamento da Light, embora tenha recebido pelo menos quatro comunicados da Light informando que o orçamento estaria pronto entre 15 e 30 dias. Em 2 de maio, pela segunda vez, busquei a Ouvidoria da Light, que se comprometeu a me dar o orçamento dentro de 15 dias e, até agora, não recebi nada.  
Creio que a maioria das famílias brasileiras já viveu com alguma concessionária de serviço público privada (água e esgoto, energia elétrica, gás, comunicações, etc) um pequeno ou grande drama, percebeu sua impotência e o difícil processamento de qualquer questão, inclusive aquelas de bom senso elementar. O cidadão é jogado de uma mesa a outra, recebe notícias vagas e não é atendido em seu pleito. Claro que é possível recorrer à justiça, porém, além dos custos, há a necessidade de reunião de provas e a finalização do processo quase sempre é incompatível com a necessidade do cidadão, que pode recorrer ao Procon e ser submetido a seus rituais. As concessionárias são as recordistas de processos no Procon. Aparentemente preferem pagar multas do que realizar os investimentos e os ajustamentos administrativos para melhorar seu desempenho.
 O cidadão se sente impotente ante a concessionária. Quando conversa com alguém no balcão, recebe promessas, explicações padronizadas, vagas e insuficientes. Quase sempre a promessa não é cumprida. Quase sempre o atendente é simpático e se solidariza com o drama e confessa também sua impotência.  
A moldura neoliberal dá ganhos substanciais às concessionárias sem obrigá-las a investir em infraestrutura  
Esse quadro de deterioração do serviço público é um resultado da ideologia neoliberal que, em busca da privatização, definiu algumas poucas atividades como "essenciais" ao Estado e partiu para a privatização afirmando que os cidadãos seriam protegidos pelas Agências reguladoras. Essa é uma mentira ideológica da pior qualidade!
 Ninguém que trabalha pode acompanhar as decisões das Agências, porém os interesses privados focados naquela atividade exercem a plenitude de seu peso na orientação das decisões das Agências. Cada Agência Reguladora procura ter autonomia do Conselho Monetário Nacional (CMN), que põe e dispõe sobre juros, taxa de câmbio, política de reservas e fiscalização do setor bancário e do mercado de capitais.
 Qualquer um formado em Economia tem dificuldade de entender as decisões do CMN
e do BC. Assumo o que Thomas Jefferson afirmou, em 1802: "Penso que as instituições bancárias são mais perigosas para nossas liberdades do que exércitos inteiros prontos para o combate". Um pai da democracia norte-americana advertiu, porém não impediu que, em 1913, fosse fundado o Fed americano. W. Wilson, em 1916 disse: "Existe um poder tão organizado, sutil, vigilante, unido, completo e penetrante que seria melhor que sequer sussurrássemos quando dirigimos palavras de condenação contra este poder". Esse presidente, claramente arrependido, foi quem assinou, em 1913, o ato de constituição do Fed.  
Para o cidadão, o controle do dinheiro é um mistério, porém os serviços públicos são
muito mais próximos do seu cotidiano - é uma zona tornada misteriosa pela atuação das concessionárias em conluio com as Agências Reguladoras. Há pouco tempo, a Agência Reguladora dos serviços de eletricidade retirou o ônus da concessionária privada quando interromper o fornecimento por falha operacional ou técnica. Se um aparelho eletrodoméstico queimar, a única indenização será apenas o não pagamento da conta de fornecimento do dia da interrupção.
 No passado, a cidadania reclamava do serviço público e, por vezes, lograva sensibilizar o poder político. Hoje, frente aos mistério das concessionárias, o brasileiro é intimidado com o argumento do "poder de mercado" e da (falsa) competição. Pleitos do que seria um direito pelo serviço prestado, não atendidos por razões mercantis pela concessionária, são embargados. O serviço público privatizado e a Agência Reguladora
tem sido instrumentos combinados de tortura da família brasileira.
O neoliberalismo com Estado mínimo e formato institucional que retira do poder político a capacidade de intervenção nas concessionárias é uma forma de concentra poder em relação à cidadania. À fragilidade do cidadão se contrapõe, no formato neoliberal, o poder de dominação dos mercados. É uma falsa democracia o cidadão poder protestar e recorrer à justiça, pois mesmo se vitorioso, sofre toda a postergação de atendimento de seu direito.
 O setor financeiro pode praticar ganhos abusivos e transferir para o dono da conta, via tarifas bancárias, todos os seus custos administrativos. O CMN acha perfeitamente normal que, numa economia de lento crescimento, seja explosivo o ganho bancário. Tão sedutor é ganhar com os serviços ligados ao dinheiro que uma enxurrada de bancos do exterior está se propondo a investir no Brasil. Se o conluio com os bancos brasileiros já torna a vida do cidadão difícil, imagine o que será com a presença de bancos estrangeiros.
A rentabilidade patrimonial de algumas concessionárias privadas de serviços públicos é espetacular.
Alguém já disse que as distribuidoras de energia elétrica no Brasil têm a mais elevada rentabilidade. O reverso desse quadro é um país com enorme potencial hidrelétrico que pratica uma tarifa de energia elétrica absurdamente elevada. A moldura institucional neoliberal possibilita ganhos substanciais das concessionárias e não dispõe de capacidade para obrigá-las a investir em infraestrutura. A matriz energética brasileira está evoluindo de forma perversa em direção à energia nãorenovável.
 A matriz logística é péssima do ponto de vista de custos e convive com recordes de morticínio. O DNT e a Polícia Rodoviária Federal registraram, em 2009, 7.376 mortes. No mesmo ano, morreram, na Alemanha, 3657 pessoas. O Brasil tinha, naquele ano, 62 mil quilômetros de rodovia, enquanto a Alemanha tinha 231 mil quilômetros. Obviamente, os dias de hospitalização e a tragédia de mutilações permanentes se movem na mesma direção que as mortes nas rodovias.
Privatizar e regular de forma obscura não é solução em sociedades complexas e modernas. O neoliberalismo mutila a democracia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário