Sensor publica reportagem de Carlos Drummond, da Carta Capital, transcrita do Conversa Afiada:
A transferência de renda para os ricos é crescente no País, na contramão da tendência mundial de aumentar os impostos para as faixas mais altas. Tornou-se também uma instituição sólida, garantida pelas políticas tributária, fiscal, monetária e cambial, mostrou o seminário sobre o tema organizado pelo site Plataforma Política Social e o Le Monde Diplomatique Brasil, na segunda-feira 15, em São Paulo.
Segundo o economista Rodrigo Octávio
Orair, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e
do International Policy Center for Inclusive Growth, da Organização das
Nações Unidas, três condições tornam o Brasil o paraíso dos ricos e
super-ricos. A primeira é a taxa de juros sem paralelo no resto do
mundo, garantia de alta rentabilidade para o capital. A segunda condição
é a isenção tributária de lucros e dividendos, instituída em 1995 no
governo FHC. A terceira são as alíquotas de impostos muito baixas para
as aplicações financeiras, de 15% a 20%, quando os assalariados pagam
até 27,5%.
“A concentração de renda no Brasil não
tem rival no mundo”, apontou Orair. Na pesquisa realizada com Sérgio
Wulff Gobetti, também pesquisador do Ipea, utilizou a base de dados
sobre os 20 países mais ricos criada pelo economista francês Thomas
Piketti, autor do livro O Capital no Século XXI. O meio milésimo mais
rico do País, composto de 71 mil pessoas, “uma população que cabe num
estádio de futebol”, apropria-se de 8,5% de toda a renda nacional das
famílias. Na Colômbia, a proporção é 5,4% e nas economias desenvolvidas
fica abaixo de 2%.
Há um movimento mundial para reduzir a
desigualdade econômica. De 2008 para cá, 21 dos 34 países da OCDE
tomaram medidas de aumento da tributação dos mais ricos. Os Estados
Unidos elevaram as alíquotas máximas do Imposto de Renda daquela camada e
o Chile tomou medida semelhante em 2013, para financiar a educação. “O
Brasil é um dos poucos lugares onde não se toca no tema. A discussão
está bloqueada”, descatou o pesquisador do Ipea.
Os super-ricos do Brasil têm renda
média de 4 milhões de reais, dois terços dos seus ganhos, compostos de
lucros e dividendos, são isentos e um quarto está aplicado no mercado
financeiro com alíquotas, em média, entre 16% e 17%.
O argumento de que não cabe taxar
dividendos porque a empresa já recolhe impostos e haveria uma
bitributação não procede. Segundo Orair, “quase todos os países possuem
esse sistema clássico de tributação, do lucro na empresa e dos
dividendos distribuídos às pessoas físicas”. O único integrante da OCDE
com isenção de dividendos é a Estônia.
O sistema todo é regressivo, mas os
mais ricos, isentos de tributação na maior parte da sua renda, costumam
dizer que todos pagam o pato. “Com isso, canalizam a raiva de quem paga
de fato para defender o seu próprio status quo”, criticou o pesquisador.
Para Grazielle Custódio David,
especialista em orçamento público e assessora do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc), o problema está na receita, mas o discurso é
muito focado na despesa. A partir de 1995, não houve aumento
descontrolado de despesas. A receita, no entanto, caiu 50% entre o
último governo Lula e o primeiro mandato de Dilma.
Prejudicada pelas desonerações, a
receita do governo cai também por causa da sonegação e da elisão fiscal,
realizada com um planejamento tributário “extremamente agressivo e
caro”, só acessível às grandes empresas, na maior parte multinacionais,
destacou Grazielle. O fim da elisão fiscal representaria um potencial de
aumento da arrecadação entre 0,8% e 2% do PIB, no cálculo de Orair.
Os principais tributos sonegados são o
IPI, incidente sobre a indústria, e o Imposto de Renda. Um estudo do
Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional concluiu que 22,3% da
arrecadação é sonegada, o equivalente, em 2015, a 454 bilhões de reais,
ou 7,7% do PIB. Um valor quatro vezes superior ao déficit fiscal da
União em 2015, de 111 bilhões. “O País sofreu no ano passado com um
déficit fiscal apontado como a ruína das contas nacionais, quando havia
um valor quatro vezes maior em tributos sonegados”, sublinhou a
assessora do Inesc.
Os débitos de impostos não pagos no
prazo são inscritos na dívida ativa da União, hoje em “incrível 1
trilhão e meio de reais, acima da arrecadação total brasileira em 2015,
de 1,2 trilhão”. Segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional,
somente 1% da dívida ativa é resgatada a cada ano.
Além disso, há 252 bilhões que já
transitaram em julgado, valor muito maior que o déficit fiscal do ano
passado e o deste ano também. “Não tem mais como recorrer, é só ir lá e
recolher. Com tanto dinheiro a receber pelo governo, fica claro que a
intenção não é fazer um concerto fiscal, mas mudar a sociedade e a
Constituição, destruir as políticas públicas e o princípio de
solidariedade e fraternidade”, concluiu Grazielle.
Segundo o economista Bruno de Conti, da
Unicamp, “a alegação é de que a taxa Selic e a sua elevação servem para
combater a inflação, mas é evidente que se prestam também para garantir
a remuneração dos detentores de títulos públicos”, um mecanismo de
transferência assegurado pela política monetária. “Dizem que o Bolsa
Família e as cotas nas universidades não são meritocráticas. Não há nada
mais antimeritocrático, porém, do que uma política monetária que
garante aos detentores de patrimônio o seu crescimento ao infinito. Isso
é ignorado de forma intencional e estratégica.”
A política cambial é uma das âncoras do
fluxo constante de renda para os ricos. Há uma relação “muito grande”
entre a taxa de juros e o dólar”, diagnosticou Laura Carvalho,
professora de economia da USP. Antes de pensar em reduzir os juros,
disse, é preciso tornar a taxa de câmbio menos suscetível aos fluxos
voláteis internacionais, a começar pela regulação do mercado enorme de
derivativos cambiais.
A transferência de renda e seus
mecanismos quase sempre são camuflados por justificativas técnicas,
supostamente neutras. A primeira ata do Conselho de Política Monetária
do Banco Central sob a presidência de Ilan Goldfajn, sobre a decisão de
manter os juros em 14,25%, põe em xeque, no entanto, a isenção do órgão,
analisa a economista: “Nunca antes na história deste país ficou tão
óbvio o caráter político da decisão do BC”.
A ata anterior, a última do período de
Alexandre Tombini na presidência do BC, registrou que não era possível
baixar a Selic por causa do déficit fiscal muito elevado e do momento
expansionista da economia. “Agora, o Copom não fala mais no déficit de
curto prazo nem na situação fiscal expansionista, apesar do déficit
muito maior anunciado pelo governo, de 170 bilhões de reais para 2016 e
de 139 bilhões no próximo ano. Afirma apenas que aguarda a aprovação das
reformas estruturais de longo prazo.” A Emenda Constitucional 241, que
limita o crescimento dos gastos sociais e investimentos públicos aos
valores do ano anterior corrigidos pela inflação, e a reforma da
Previdência “melhorariam a percepção dos agentes e aí, sim, se pensaria
em reduzir os juros”.
Na verdade, o BC não manteve a taxa,
pois, “com a inflação em queda, manter os juros significa elevá-los. E
vamos combinar: mesmo se as reformas forem aprovadas, não garantem a
melhora da situação fiscal, pois têm a ver com aumento de despesas, não
com receitas, e não indicam nada sobre o que vai acontecer com o
crescimento. Portanto, de nenhuma maneira garantem uma estabilidade da
dívida pública ao longo do tempo, que depende de muitas coisas,
inclusive da taxa de juros”, chama a atenção a economista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário