quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

NEGOCIAÇÃO COLETIVA NA GRÉCIA APÓS AS MUDANÇAS IMPOSTAS PELA “TROIKA”[1]



Thorsten Schulten

A radical reestruturação no sistema de negociação coletiva da Grécia foi, desde o início, uma das demandas centrais do 3º Memorando da chamada “Troika”, formada pelo Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional (Schulten, 2015). Sob os dois primeiros memorandos, a Grécia foi forçada a concordar com mudanças profundas no ordenamento legal da negociação coletiva, que levou a uma descentralização radical e uma eliminação em larga escala de acordos envolvendo múltiplas empresas. De acordo com o 3º Memorando de agosto de 2015, o desenvolvimento da negociação coletiva na Grécia deverá ser agora avaliado por uma comissão internacional composta de especialistas independentes e representantes de organizações internacionais – inclusive as instituições da “Troika”, mas também a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Com base nessa avaliação, posteriores reformas do sistema de negociação da Grécia deveriam ser decididas à luz de “melhores práticas” existentes na Europa.

Mudanças na legislação sobre negociações coletivas na Grécia por pressão da “Troika”
Desde o início dos anos 1990, a Grécia tinha um abrangente sistema de negociação coletiva, com importantes negociações em nível nacional, setorial e ocupacional, com grande cobertura de beneficiários, ao redor de 80%. Em nível nacional, as organizações sindicais e empresariais negociavam um acordo coletivo macro, no qual certas condições de trabalho mínimas – inclusive o valor do salário mínimo – eram definidas. A partir daí, acordos coletivos podiam ser firmados tanto em nível nacional quanto regional para setores específicos ou grupos ocupacionais. Finalmente, empresas podiam firmar acordos específicos com os respectivos sindicatos.
A estrutura do sistema de negociação coletiva grego era estritamente hierárquico, com base no princípio da regra mais favorável, de tal sorte que acordos coletivos de nível inferior só poderiam conter provisões que fossem mais favoráveis aos trabalhadores. Acima de tudo, a extensão dos acordos coletivos era muito disseminada, levando-se em consideração que a economia grega é majoritariamente constituída de pequenas e micro empresas. Havia, portanto, uma regra erga omnes para o acordo coletivo nacional, segundo a qual todas as empresas eram abrangidas pelo instrumento firmado entre as partes. Acordos setoriais ou por grupos ocupacionais, como praxe, eram declarados como de obrigação geral pelo Ministro do Trabalho grego, na medida em que cobrissem a maioria dos trabalhadores no setor ou grupo ocupacional em questão. Além disso, acordos menos abrangentes podiam ser estendidos, se a extensão fosse proposta por uma das partes acordantes.
A política da “Troika”, entretanto, partia do pressuposto de que a principal causa da crise grega era a baixa competitividade, que deveria ser estimulada por uma política de “desvalorização interna”, particularmente através de cortes de salários e outros custos do trabalho. Assim, as mudanças na legislação da negociação coletiva grega introduzidas no outono de 2011 continham três pontos dispositivos:
1)     A abolição do princípio da regra mais favorável na hierarquia dos acordos coletivos, de tal forma que acordos ao nível das empresas podem dispor sobre normais menos favoráveis do que as definidas em níveis mais elevados;

2)     A abolição do princípio erga omnes e da extensão dos acordos coletivos;

3)     A suspensão do monopólio sindical na negociação coletiva, com a possibilidade de assinatura de acordos em nível de empresa por representantes não sindicais, se apoiados por pelo menos três quintos da força de trabalho.
Adicionalmente, outras mudanças foram feitas em 2012, como a redução do período de extensão da validade das cláusulas para além da data limite do acordo, de seis para três meses, bem como um corte de 22% no salário mínimo acordado coletivamente (32% para trabalhadores com idade inferior a 25 anos). Decidiu-se, também, que, no futuro, o salário mínimo não seria mais definido em acordo coletivo nacional, mas pela lei.

Efeitos práticos das reformas na negociação coletiva
A amplitude das mudanças na legislação de negociação coletiva grega levou, na prática, a uma radical transformação desta prática. O sinal mais evidente disso foi o declínio dos acordos envolvendo múltiplas empresas (Tabela 1).  Embora não existam dados oficiais disponíveis sobre a cobertura dos atuais acordos coletivos, é provável que apenas uma minoria de trabalhadores permaneçam protegidos por acordos envolvendo múltiplas empresas.
Imediatamente após a adoção da reforma do sistema de negociação coletiva, no outono de 2011, por um curto momento ocorreu um forte crescimento na realização de acordos em nível de empresas. Nos anos seguintes, porém, ocorreu uma queda dramática dessa ocorrência, cuja dinâmica retornou ao nível pré-crise. O crescimento do número de acordos por empresa parece, portanto, mais um fenômeno temporário, do que uma compensação permanente para o declínio das negociações envolvendo múltiplas empresas.
Tabela 1 – Acordos coletivos recentemente firmados na Grécia – 2000-2015

O caráter temporário dos novos acordos por empresa é confirmado pela forma particular e pelo conteúdo desses acordos. A grande maioria deles não foram firmados por sindicatos, mas por representantes não sindicais de trabalhadores. De acordo com pesquisa realizada pela Universidade de Patras, de um total de 1.336 acordos por empresa firmados entre novembro de 2011 e dezembro de 2013, somente 30% foram firmados por sindicatos, enquanto 70% foram assinados por representantes não sindicais de trabalhadores.
Em quase todos os acordos por empresa, as novas opções legais de negociação coletiva foram adotadas, propiciadas pela derrogação do princípio da regra mais favorável: com efeito, três quartos de todos os acordos continham cortes de salários, enquanto os restantes os congelaram nos níveis preexistentes. Por outro lado, aumentos de salários estiveram quase ausentes, sendo observados em mero 1,5% dos acordos.

Há chances de reversão?
A reestruturação do sistema de negociação coletiva grego levou a uma radical descentralização e profunda erosão desse instrumento. No entendimento da “Troika”, essa reestruturação foi “exitosa”, na medida em que contribuiu para cortes nos salários em média de 20%, cortes esses mais severos do que em qualquer outro país europeu. Entretanto, a esperança de que isto levaria a um novo “boom” exportador, decorrente de um choque de competitividade de preços não se verificou totalmente. Os cortes nos salários, ao contrário, levaram a uma drástica queda na demanda agregada e serviram apenas para exacerbar a crise.
Em oposição a este cenário, em abril de 2015 o governo do Syriza apresentou um projeto de lei revertendo as mudanças na negociação coletiva. Em essência, o projeto de lei propunha a reintrodução do princípio da regra mais favorável na hierarquia dos acordos coletivos, a possibilidade de extensão dos acordos coletivos e a reafirmação dos sindicatos como únicos representantes legítimos para firmarem acordos em nível de empresas. Em empresas onde não houvesse representação sindical no local de trabalho, os acordos seriam firmados pelo sindicato local ou setorial. Além disso, o projeto de lei propunha que, em meados de 2016, os cortes no salário mínimo seriam revogados em duas etapas, de forma a recuperar o nível de 2011. A adoção dessas medidas, entretanto, fracassou, diante da resistência da “Troika”. 
No escopo do terceiro Memorando adotado em agosto de 2015, focou acordado que o governo grego “iniciará, em outubro de 2015, um processo de consulta a um grupo de especialistas independentes, para rever um determinado número de regras do mercado de trabalho, incluindo demissões coletivas, ação sindical e negociação coletiva”. Por condição imposta pelo governo grego, a OIT será também incluída no processo de consulta. O governo grego, entretanto, terá que acordar com a “Troika” sobre toda “a organização, termos de referência e cronograma” desse processo de consulta, bem como sobre futuras mudanças na legislação da negociação coletiva.
Do ponto de vista substantivo, o 3º Memorando determina que o desenvolvimento futuro do sistema grego de negociação coletiva deverá “levar em conta as melhores práticas internacionais e europeias”. Entretanto, o significado de “melhores práticas” concernentes à negociação coletiva” é extremamente controverso. No passado – não apenas na Grécia, mas em vários outros países europeus -, a “Troika” não hesitou sobre sua visão de que “boa prática” consiste num sistema radicalmente descentralizado de negociação coletiva, com baixa cobertura dos acordos.
Em contrapartida, o Diretório Geral para o Emprego, da Comissão Europeia, por exemplo, no seu recente Relatório sobre Relações Industriais, novamente e de forma expressa afirmou que foram os países europeus com os mais desenvolvidos e abrangentes sistemas de relações trabalhistas e negociações coletivas que enfrentaram melhor a crise. No processo de consulta planejado, não é de pouca importância se a Comissão Europeia for representada pelo Diretório Geral de Assuntos Econômicos e Financeiros, de orientação mais neoliberal, ou pelo Diretório Geral para o Emprego, que nesse assunto é que deveria liderar.
Um papel importante também deverá ser desempenhado pela OIT, que defende principalmente um sistema abrangente de negociação coletiva e ampla cobertura dos acordos. A OIT já reclamou que as mudanças legais impostas pela “Troika” levaram a um significativo enfraquecimento na prática da negociação coletiva na Grécia.
A próxima discussão sobre o futuro do sistema de negociação coletiva grego promete, portanto, ser controversa. Com a participação da “Troika”, por um lado, e a OIT, por outro, as discussões não estarão confinadas à Grécia, mas terão uma dimensão internacional, com impacto também em outros países europeus. Neste cenário, seria ua decisão acertada se os sindicatos europeus se envolvessem nessa discussão, dando apoio ao lado grego nessa tentativa de recuperar o sistema de negociação coletiva.

Thorsten Schulten é pesquisador sênior no Wirtschafts und Sozialwissenschaftliches Institut (WSI), na Fundação Hans-Böckler em Dusseldorf, Alemanha.

Tradução: Carlindo Rodrigues de Oliveira.


[1] Esta é uma versão resumida de uma análise mais detalhada: Thorsten Schulten, Oportunidades para uma restauração? O futuro da negociação coletiva na Grécia após o Terceiro Memorandum, Friedrich Ebert Stiftung, Berlin, setembro de 2015.
Disponível em: http://library.fes.de/pdf-files/id-moe/11624.pdf

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