Thorsten Schulten
A
radical reestruturação no sistema de negociação coletiva da Grécia foi, desde o
início, uma das demandas centrais do 3º Memorando da chamada “Troika”, formada
pelo Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional
(Schulten, 2015). Sob os dois primeiros memorandos, a Grécia foi forçada a
concordar com mudanças profundas no ordenamento legal da negociação coletiva,
que levou a uma descentralização radical e uma eliminação em larga escala de
acordos envolvendo múltiplas empresas. De acordo com o 3º Memorando de agosto
de 2015, o desenvolvimento da negociação coletiva na Grécia deverá ser agora
avaliado por uma comissão internacional composta de especialistas independentes
e representantes de organizações internacionais – inclusive as instituições da
“Troika”, mas também a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Com base
nessa avaliação, posteriores reformas do sistema de negociação da Grécia
deveriam ser decididas à luz de “melhores práticas” existentes na Europa.
Mudanças na legislação sobre
negociações coletivas na Grécia por pressão da “Troika”
Desde
o início dos anos 1990, a Grécia tinha um abrangente sistema de negociação coletiva,
com importantes negociações em nível nacional, setorial e ocupacional, com
grande cobertura de beneficiários, ao redor de 80%. Em nível nacional, as
organizações sindicais e empresariais negociavam um acordo coletivo macro, no
qual certas condições de trabalho mínimas – inclusive o valor do salário mínimo
– eram definidas. A partir daí, acordos coletivos podiam ser firmados tanto em
nível nacional quanto regional para setores específicos ou grupos ocupacionais.
Finalmente, empresas podiam firmar acordos específicos com os respectivos
sindicatos.
A
estrutura do sistema de negociação coletiva grego era estritamente hierárquico,
com base no princípio da regra mais favorável, de tal sorte que acordos
coletivos de nível inferior só poderiam conter provisões que fossem mais
favoráveis aos trabalhadores. Acima de tudo, a extensão dos acordos coletivos
era muito disseminada, levando-se em consideração que a economia grega é
majoritariamente constituída de pequenas e micro empresas. Havia, portanto, uma
regra erga omnes para o acordo
coletivo nacional, segundo a qual todas as empresas eram abrangidas pelo
instrumento firmado entre as partes. Acordos setoriais ou por grupos
ocupacionais, como praxe, eram declarados como de obrigação geral pelo Ministro
do Trabalho grego, na medida em que cobrissem a maioria dos trabalhadores no
setor ou grupo ocupacional em questão. Além disso, acordos menos abrangentes
podiam ser estendidos, se a extensão fosse proposta por uma das partes
acordantes.
A
política da “Troika”, entretanto, partia do pressuposto de que a principal
causa da crise grega era a baixa competitividade, que deveria ser estimulada
por uma política de “desvalorização interna”, particularmente através de cortes
de salários e outros custos do trabalho. Assim, as mudanças na legislação da
negociação coletiva grega introduzidas no outono de 2011 continham três pontos dispositivos:
1) A
abolição do princípio da regra mais favorável na hierarquia dos acordos
coletivos, de tal forma que acordos ao nível das empresas podem dispor sobre
normais menos favoráveis do que as definidas em níveis mais elevados;
2) A
abolição do princípio erga omnes e da
extensão dos acordos coletivos;
3) A
suspensão do monopólio sindical na negociação coletiva, com a possibilidade de assinatura
de acordos em nível de empresa por representantes não sindicais, se apoiados
por pelo menos três quintos da força de trabalho.
Adicionalmente,
outras mudanças foram feitas em 2012, como a redução do período de extensão da
validade das cláusulas para além da data limite do acordo, de seis para três
meses, bem como um corte de 22% no salário mínimo acordado coletivamente (32%
para trabalhadores com idade inferior a 25 anos). Decidiu-se, também, que, no
futuro, o salário mínimo não seria mais definido em acordo coletivo nacional,
mas pela lei.
Efeitos práticos das reformas na
negociação coletiva
A
amplitude das mudanças na legislação de negociação coletiva grega levou, na
prática, a uma radical transformação desta prática. O sinal mais evidente disso
foi o declínio dos acordos envolvendo múltiplas empresas (Tabela 1). Embora não existam dados oficiais disponíveis
sobre a cobertura dos atuais acordos coletivos, é provável que apenas uma
minoria de trabalhadores permaneçam protegidos por acordos envolvendo múltiplas
empresas.
Imediatamente
após a adoção da reforma do sistema de negociação coletiva, no outono de 2011, por
um curto momento ocorreu um forte crescimento na realização de acordos em nível
de empresas. Nos anos seguintes, porém, ocorreu uma queda dramática dessa
ocorrência, cuja dinâmica retornou ao nível pré-crise. O crescimento do número
de acordos por empresa parece, portanto, mais um fenômeno temporário, do que
uma compensação permanente para o declínio das negociações envolvendo múltiplas
empresas.
Tabela
1 – Acordos coletivos recentemente firmados na Grécia – 2000-2015
O
caráter temporário dos novos acordos por empresa é confirmado pela forma
particular e pelo conteúdo desses acordos. A grande maioria deles não foram
firmados por sindicatos, mas por representantes não sindicais de trabalhadores.
De acordo com pesquisa realizada pela Universidade de Patras, de um total de
1.336 acordos por empresa firmados entre novembro de 2011 e dezembro de 2013,
somente 30% foram firmados por sindicatos, enquanto 70% foram assinados por
representantes não sindicais de trabalhadores.
Em
quase todos os acordos por empresa, as novas opções legais de negociação
coletiva foram adotadas, propiciadas pela derrogação do princípio da regra mais
favorável: com efeito, três quartos de todos os acordos continham cortes de
salários, enquanto os restantes os congelaram nos níveis preexistentes. Por
outro lado, aumentos de salários estiveram quase ausentes, sendo observados em
mero 1,5% dos acordos.
Há chances de reversão?
A
reestruturação do sistema de negociação coletiva grego levou a uma radical
descentralização e profunda erosão desse instrumento. No entendimento da
“Troika”, essa reestruturação foi “exitosa”, na medida em que contribuiu para
cortes nos salários em média de 20%, cortes esses mais severos do que em
qualquer outro país europeu. Entretanto, a esperança de que isto levaria a um
novo “boom” exportador, decorrente de um choque de competitividade de preços
não se verificou totalmente. Os cortes nos salários, ao contrário, levaram a
uma drástica queda na demanda agregada e serviram apenas para exacerbar a
crise.
Em
oposição a este cenário, em abril de 2015 o governo do Syriza apresentou um
projeto de lei revertendo as mudanças na negociação coletiva. Em essência, o
projeto de lei propunha a reintrodução do princípio da regra mais favorável na
hierarquia dos acordos coletivos, a possibilidade de extensão dos acordos
coletivos e a reafirmação dos sindicatos como únicos representantes legítimos para
firmarem acordos em nível de empresas. Em empresas onde não houvesse
representação sindical no local de trabalho, os acordos seriam firmados pelo
sindicato local ou setorial. Além disso, o projeto de lei propunha que, em
meados de 2016, os cortes no salário mínimo seriam revogados em duas etapas, de
forma a recuperar o nível de 2011. A adoção dessas medidas, entretanto,
fracassou, diante da resistência da “Troika”.
No
escopo do terceiro Memorando adotado em agosto de 2015, focou acordado que o
governo grego “iniciará, em outubro de
2015, um processo de consulta a um grupo de especialistas independentes, para
rever um determinado número de regras do mercado de trabalho, incluindo
demissões coletivas, ação sindical e negociação coletiva”. Por condição imposta
pelo governo grego, a OIT será também incluída no processo de consulta. O
governo grego, entretanto, terá que acordar com a “Troika” sobre toda “a organização, termos de referência e cronograma”
desse processo de consulta, bem como sobre futuras mudanças na legislação da
negociação coletiva.
Do
ponto de vista substantivo, o 3º Memorando determina que o desenvolvimento
futuro do sistema grego de negociação coletiva deverá “levar em conta as melhores práticas internacionais e europeias”.
Entretanto, o significado de “melhores
práticas” concernentes à negociação coletiva” é extremamente controverso.
No passado – não apenas na Grécia, mas em vários outros países europeus -, a
“Troika” não hesitou sobre sua visão de que “boa prática” consiste num sistema
radicalmente descentralizado de negociação coletiva, com baixa cobertura dos
acordos.
Em
contrapartida, o Diretório Geral para o Emprego, da Comissão Europeia, por
exemplo, no seu recente Relatório sobre Relações Industriais, novamente e de
forma expressa afirmou que foram os países europeus com os mais desenvolvidos e
abrangentes sistemas de relações trabalhistas e negociações coletivas que
enfrentaram melhor a crise. No processo de consulta planejado, não é de pouca
importância se a Comissão Europeia for representada pelo Diretório Geral de
Assuntos Econômicos e Financeiros, de orientação mais neoliberal, ou pelo
Diretório Geral para o Emprego, que nesse assunto é que deveria liderar.
Um
papel importante também deverá ser desempenhado pela OIT, que defende
principalmente um sistema abrangente de negociação coletiva e ampla cobertura
dos acordos. A OIT já reclamou que as mudanças legais impostas pela “Troika”
levaram a um significativo enfraquecimento na prática da negociação coletiva na
Grécia.
A
próxima discussão sobre o futuro do sistema de negociação coletiva grego
promete, portanto, ser controversa. Com a participação da “Troika”, por um
lado, e a OIT, por outro, as discussões não estarão confinadas à Grécia, mas
terão uma dimensão internacional, com impacto também em outros países europeus.
Neste cenário, seria ua decisão acertada se os sindicatos europeus se
envolvessem nessa discussão, dando apoio ao lado grego nessa tentativa de
recuperar o sistema de negociação coletiva.
Thorsten
Schulten é pesquisador sênior no Wirtschafts und Sozialwissenschaftliches
Institut (WSI), na Fundação Hans-Böckler em Dusseldorf, Alemanha.
Tradução:
Carlindo Rodrigues de Oliveira.
[1]
Esta é uma versão resumida de uma análise mais detalhada: Thorsten Schulten,
Oportunidades para uma restauração? O futuro da negociação coletiva na Grécia
após o Terceiro Memorandum, Friedrich Ebert Stiftung, Berlin, setembro de 2015.
Disponível em:
http://library.fes.de/pdf-files/id-moe/11624.pdf
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