Refestelada
em seus automóveis de luxo, parte da classe média defende o
“bom senso” dos acomodados
Por Luis
Fernando Vitagliano
Estudantes e insatisfeitos têm
parado as grandes capitais do país em protestos contra o
aumento do preço dos bilhetes de transporte coletivo. O
Movimento pelo Passe Livre colocou-se à frente dos protestos,
que começaram com chamadas pelas redes sociais e internet e
foram se avolumando até pelo boca a boca. Agora, Policia
Militar e manifestantes opõem-se nas ruas. Governador de um
lado, movimentos sociais e partidos de esquerda de outro.
Grande imprensa contra as mídias sociais. Representantes das
classes médias contra seus próprios filhos. A polarização é
evidente: muitos deixam a razão de lado e encontram o momento
apropriado para expressar despudoradamente sentimentos
preconceituosos, que normalmente esconderiam.
Através de quatro assertivas muito
discutidas recentemente este texto pretende mostrar como boa
parte do que se diz por aí contra as manifestações são mitos
que nada tem a ver com a realidade.
O primeiro e mais frequente mito:
fechar ruas e avenidas impede a liberdade de ir e vir das
pessoas.
Isso, quando não apelam para o
sentimentalismo barato e dizem que os protestos impedem as
ambulâncias de circular ou os bombeiros de trabalhar. Todo o
argumento gira em torno do prejuízo que os condutores dos seus
veículos particulares vão ter por chegar uma hora mais tarde
em casa. Ninguém se importa com ambulância ou bombeiro quando
está preso no trânsito. Mesmo com leis mais duras e severas os
mesmo que se indignam pelo trânsito fechado por protestos
continuam cometendo impropérios. Os congestionamentos causados
pelos feriados impedem muito mais o trabalho dos socorristas
que os protestos, e não há indícios de que isso incomoda o
cidadão comum.
Alguns “indignados do bom senso”
ainda têm a cara de pau de recorrer ao direito de ir e vir.
Francamente, e o direito de ir e vir dos milhões trabalhadores
que enfrentam horas de trânsito, por conta de milhares de
outros cidadãos egoístas que dirigem seus carros sozinhos e
engrossam o trafego? Os nobres confortáveis no estofamento de
couro dos seus carros podem usar seu direito de ir e vir
deixando o carro em casa, e usando o metrô ao preço de R$
3,20. Direito de ir e vir para parte da classe média significa
que ninguém deve protestar contra seu estilo de vida, ou pior
ainda: fazer com que cheguem mais tarde em casa e se arrisquem
a perder a novela.
Segundo mito: o conservador, que
quer pautar o movimento e dizer contra o quê se deve
protestar.
E quando a imprensa resolve discutir os motivos
do protesto? Protestar por quê? Ninguém perguntou a pauta do
movimento. Só pelo preço do transporte? Se tem mais assuntos
não importa, porque vai começar aquele discursinho. Deveriam
mesmo é protestar contra a corrupção dos políticos, contra o
aumento dos impostos, contra o governo. O resto é alienação.
Mas quem decide sobre o que protestar? A Folha de São Paulo?
O Estadão?
Os intelectuais de esquina, como eu ou o Arnaldo Jabor? Jabor
disse em um comentário nas rádios que os estudantes deveriam
protestar contra o mensalão e não contra o aumento no bilhete
dos ônibus. Ué? Pois que ele organize o protesto contra o
mensalão. Não é liberdade de expressão? Pois que cada um
proteste contra aquilo que acha injusto. E absolutamente
descabido e ilógico que quem não participa do protesto diga
sobre o que se deve protestar. Nada mais manipulador que isso!
Sem mais…
Terceiro mito: a violência do
movimento e a reação da polícia que deve colocar ordem às
ruas
Este é o mito evocado pelo
governador, diretamente de Paris. E ganhou peso junto à
corporação policial. Com a carta branca do governador a PM
soltou os Pit-Bulls – não os cachorros, mas aqueles policiais
que primeiro batem, depois se questionam porque estão batendo;
se é que em algum momento se questionam.
O fato é que as declarações do
governador, afirmando que a polícia iria reprimir o
“vandalismo”, caíram como luva nas tropas de choque. O que
você acha que pensa um policial sobre um cabeludo cheio de
tatuagens, que carrega um skate nas mãos e fala “mano!”?
Vândalo por antecipação.
Quando a PM reage indiscriminadamente, aumenta e
não diminui a desordem. Se cinco mil pessoas estão protestando
e meia dúzia resolve cometer um ato de vandalismo, qual a
resultado de uma reação indiscriminada da polícia? Teremos, em
instantes, um crescimento de seis vândalos para cinco mil e
seis revoltosos. A PM não age para colocar ordem, age como
líquido inflamável em fogo.
Já as preocupação em desviar o
trânsito, dar alternativas ao motorista, manter os serviços de
emergência, são menores para a polícia. O grosso do
contingente está mesmo preparado para bater no primeiro
manifestante que ganha as ruas.
Quarto mito: os vagabundos
desocupados é que protestam.
Permita-me o leitor um comentário
pessoal, acho esse o mito mais divertido. É meio não ter o que
dizer. Um protesto de estudante não é um ato de desocupados.
Estudantes estão em uma fase de preparação para ocupar postos
de trabalho, mas ainda não têm formação ou experiência para
isso – algo perfeitamente normal. Estão em cargos sempre
subalternos, com salários baixos – quando encontram emprego.
Claro que têm tempo. Muitas vezes, não por opção, mas por
falta dela.
Observar os protestos por este
prisma é ignorar outro. Os jovens, da mesma forma que têm
tempo, não tem espaço. Estão buscando seu um lugar na
sociedade. Herdaram dos seus país um mundo e obviamente
discordam de vários aspectos, por isso querem fazer diferente.
Essa é a base do Movimento pelo Passe Livre, um dos mais
atuantes nos recentes protestos. É legitimo e não existe
casuisticamente: promove debates sobre transporte público e
organiza manifestações há alguns anos.
Os partidos políticos tradicionais
também não conseguem mais dar conta desses novos movimentos.
São bandeiras contemporâneas, que ainda não foram incorporadas
às pautas formais das organizações políticas. Expressam novas
preocupações. Estamos falando dos defensores do meio ambiente,
dos contrários aos maus tratos com os animais, dos ciclistas,
das e dos feministas, dos homoafetivos, dos a favor da
legalização da maconha e do aborto, enfim de um leque de
movimentos que se sentem oprimidos pela ditadura da suposta
maioria. Entender isso significa compreender, no mínimo, por
que tantos jovens saem à rua para tomar chuva e apanhar da
polícia. Se quisermos chamá-los de vagabundos, pois bem: não
importa o rótulo. Mas fique claro que esses “vagabundos”
começaram a desenhar muito bem o que querem e passaram a
defender bandeiras que sinalizam o futuro.
Um parêntese, ao terminar: aqueles
que criticam os jovens com argumentos fúteis estão agindo
politicamente da forma mais baixa: querem minar, com um tipo
particular de violência, as manifestações. Não agridem com
paus e pedras, cassetes ou gás pimenta; manejam preconceitos,
vociferam ódio, difundem medo. Não sei que violência é pior.
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