Primeiro, como de costume, desde o tempo da
casa-grande e senzala, usaram a força. Baixaram o porrete, para
intimidar. Mas o povo não recuou. Depois, entre aqueles que
mandaram bater ou se omitiram, houve quem tentasse a
dissimulação, alguns tergiversaram e não poucos calaram. Boa
parte da mídia praticou, mais uma vez, a manipulação, com falsos
argumentos. Também não deu certo. Comentaristas em redes de
televisão chegaram a fazer inusitados mea-culpa, tão
desconcertados ficaram, e ainda na vã ilusão de que
influenciariam as massas. Tentaram afinar o discurso, mas não
entenderam que há muito tempo são uma caricatura do passado. E o
que se vê nas ruas é algo novo. Não teve organização
político-partidária, mas é um movimento político. O que começou
por 20 centavos, agora não tem preço que pague, nem hora para
acabar. Mais importante do que saber em que isso vai dar, é
festejar que esteja acontecendo. É desdizer mais uma vez aqueles
que acreditam na eterna apatia do povo, como se a resignação de
todos os dias não fosse o fermento para mudar a história. Quem
tem juízo não subestima o povo que sofre calado ou que protesta
em vão diante de uma elite insensível. Há incontáveis exemplos
na história de que o que começa com um nada pode irromper com
tudo. Até mesmo em violência incontrolável. Porque sempre há uma
hora para o “basta”.
Não é simples explicar o que une 100 mil
pessoas, de repente, nas ruas do Rio, milhares em São Paulo e em
todo o Brasil. Brasileiros protestam até mesmo nas principais
cidades de outros países. Talvez um cansaço que deu ânimo a uma
revolta. Ou o ápice de tantas outras manifestações menores, nas
ruas e bairros da periferia, por direitos negados, por
retrocessos políticos, por uma incompreensão das demandas
populares.
Ironicamente, tudo isso explode, como num
grito de gol, em plena Copa das Confederações. “A rua é a maior
arquibancada do país”, diz um comercial na TV. Acertou! Não
faltam motivos para protestar nas ruas, no país em que a
democracia nunca cumpriu o papel de estender o seu manto a todos
as brasileiros e sempre serviu a tão poucos. Não é só aqui,
porque a democracia representativa, à mercê dos grandes
conglomerados financeiros, representa cada vez menos a vontade
política das sociedades. O discurso capitalista já não convence
em suas promessas de um horizonte feliz. Os empregos diminuem e
a exploração aumenta. O modelo de consumo destrói o planeta e
ameaça o futuro das próximas gerações.
No Brasil, há séculos perdura um apartheid entre os
doutores e os sem-diploma ou com rala educação formal.
Construímos desde Cabral uma sociedade que não dá chances a quem
pouco tem, e que somente tolera algumas exceções. O Judiciário,
o Parlamento e o Executivo atuam de modo a impedir que os
direitos dos cidadãos possam ser exercidos em sua plenitude.
Há muitas motivações políticas nas
manifestações. Todas válidas, todas legítimas. Mas há anos,
décadas – séculos não seria exagero – ecoa uma reivindicação
nunca atendida: queremos qualidade de vida, igualdade de
oportunidades, respeito. O direito a usufruir uma vida melhor.
No meio de uma manifestação, um cartaz
sintetizava, quem sabe, esse sentimento: “Queremos escolas e
hospitais no padrão Fifa”. Outro seguia na mesma linha: “Se tem
dinheiro pra Copa, tem que ter para a educação”. Com ironia
peculiar, apontam para a inaceitável situação de investir R$ 33
bilhões em estádios e infraestrutura para o evento e, ao mesmo
tempo, anunciar que não há dinheiro para saúde, educação,
segurança, cultura e transporte público de qualidade. Ou para
serviços públicos essenciais, sempre delegados a uma iniciativa
privada ávida por lucros. Organizar uma Copa do de Futebol e uma Olimpíada
deveria ser motivo de orgulho, desde que serviços essenciais não
estivessem à míngua, sob o repetido argumento da falta de
recursos.
A maioria dos brasileiros está cansada de ser
tratada como cidadão de segunda classe, sem direitos, a enfrentar
filas e mau humor em milhares de guichês de repartições
públicas, sucateadas por governos que se locupletam com a
iniciativa privada para lucrar com a privatização. Ninguém
aguenta mais a falta de transporte público de qualidade, com
raras linhas de trens e metrôs. Noventa por cento do transporte
“público” do país é feito por ônibus de empresas privadas, que
rodam nas mesmas vias abarrotadas de automóveis. Estudo do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que o
Estado brasileiro (União, estados e municípios) investe 12 vezes
mais no transporte individual do que no sistema de mobilidade
coletiva. Para o transporte sobre trilhos, a desculpa é sempre a
mesma, da falta de recursos. Resta, então, saber qual é o
milagre de países que não estão entre os 10 mais ricos do mundo
– e o Brasil está! – e que espalham ferrovias por todo o seu
território.
Governadores e prefeitos, embora assustados
com o tamanho das manifestações, têm sido incapazes de
compreender o que está acontecendo. Repetem bordões do tipo
“estamos numa democracia e todas essas manifestações são
legítimas, desde que pacíficas”. É patético ouvir algumas
autoridades e alguns burocratas afirmando que “aguardam as
lideranças para negociar”. Não entenderam nada do que está
acontecendo. Esperam que tudo passe e volte à normalidade dos
conchavos de gabinetes, da velha política que não presta contas
aos cidadãos. Quando muito prometerão migalhas para diminuir a
pressão, na certeza de que tudo haverá de acalmar.
Mas, o que se pôs em marcha não volta à sua
condição original. O povo está nas ruas com um recado. Governos
que não quiserem ouvir o que se grita nas praças, que não
souberem ler o que está escrito em cartazes e faixas serão
página virada da história. O que se vê nas ruas não é pouca
coisa. Trata-se de um desencanto profundo com as formas
tradicionais de política, de justiça injusta e com uma
democracia que é cada vez mais uma caricatura, muito distante do
vigor que emerge das redes sociais. Há uma potencialidade para a
criação de algo novo, que ninguém sabe ainda o que é.
O país acordou. E vai tirar o sono de muita
gente. Começou por 20 centavos, mas essa luta não tem preço!
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