segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Sob o teto da dívida, a luta pelo poder


Valor Econômico, 22/08/2011.

Por Rodrigo Sias
A discussão política sobre o teto da dívida federal nos EUA tomou conta do noticiário
econômico e político da maior parte do mundo, principalmente depois do rebaixamento
da classificação de risco do país, de AAA para AA+, e do consequente "terremoto
financeiro" nas principais bolsas de valores. Dada a importância da economia do país e
os impactos de um "calote" no simbolismo e na credibilidade do dólar como a "moeda
universal", não poderia ser diferente.
Mas se o teto da dívida federal já foi elevado tantas e seguidas vezes, a demanda por
títulos do Tesouro dos EUA continua elevadíssima e o impasse seria um "tiro no pé",
pois jogariam os EUA e o mundo numa depressão, qual seria o porquê de tamanho
rebuliço em torno da questão no Congresso? Por que existiu tanta dificuldade em se
chegar a um acordo sobre a dívida?
Três razões vêm sendo apontadas para o acirramento do debate e para a demora da
costura final do acordo: a disputa presidencial em 2012 e a briga tradicional entre
democratas e republicanos, a discussão do tamanho do Estado na economia e, por fim, a
questão "classista" em torno dos impostos.
Embora o pleito presidencial de 2012 seja crucial e a antecipação do debate eleitoral
favoreça a oposição republicana, somente interesses eleitorais de curto e médio prazo
não explicariam a contento o impasse criado e a reação aparentemente desproporcional
dos membros republicanos ultraconservadores do "Tea Party", que, por fim, aceitaram
um acordo.
Hoje, os EUA são um país rachado por uma "grande batalha". E é essa "grande
batalha" que explica como um problema econômico secundário ganhou uma
dimensão tão grande e ares tão catastróficos. É a política, mais uma vez, ditando os
rumos da economia mundial
O tamanho do Estado na economia - aqui medido em termos do tamanho da dívida
federal em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) e do tamanho do déficit público -
embora seja uma questão importante, também é secundário, uma questão contábil. O
próprio sistema de "teto para a dívida" (inspirado num modelo de pesos e contra pesos
recíprocos) foi criado para que sempre existisse a discussão que, em diversos
momentos, foi, por assim dizer, "morna".
Ronald Reagan, ícone dos republicanos, foi o presidente que transformou os Estados
Unidos de nação credora a devedora em relação ao resto do mundo. Bill Clinton,
símbolo dos democratas, deixou a Casa Branca com o orçamento federal gerando
superávits fiscais nominais. Portanto, também não é só uma questão de que
republicanos queiram orçamentos equilibrados e democratas queiram mais Estado.
Por fim, a mera observação dos grupos que apoiam e financiam os dois partidos em
disputa descarta a hipótese simplista de uma mera questão "classista" dos impostos.
Muitos democratas são apoiados pelas bilionárias fundações Ford e Rockefeller e por
clãs e famílias tradicionais como os Kennedy; e muitos republicanos, especialmente a
ala pertencente ao "Tea Party", são apoiados pela classe média dos "self made men",
pequenos e médios proprietários das áreas rurais, grupos religiosos protestantes, dentre
outros - basicamente, a "maioria silenciosa", na expressão do ex-presidente republicano
Richard Nixon.
Ou seja, há republicanos ricos e pobres que não querem aumentar a carga tributária e
democratas ricos e pobres que desejam uma rede pública de saúde paga com impostos
dos contribuintes mais abastados.
Na verdade, todas essas explicações anteriores são apenas caricaturas, minidisputas, que
fazem parte de um pano de fundo mais complexo e amplo em que se encontra o cerne
da questão: a disputa visceral de poder entre dois grandes grupos ideológicos dentro dos
Estados Unidos, os conservadores e os progressistas.
O primeiro grupo carrega a bandeira do patriotismo estadunidense, conservador por
excelência. Simbolizado pelo "Tea Party", luta pela manutenção da identidade cultural
do país e de seus valores tradicionais, desconfia da globalização e considera os EUA
como a liderança moral e o modelo político e econômico a ser seguido pelo resto do
mundo.
Dentre as personalidades políticas emblemáticas desse grupo encontram-se os expresidentes
Richard Nixon, Ronald Reagan, além das figuras recentes como a
governadora do Alasca, Sarah Palin, e Mike Huckabee, ex-governador do Arkansas.
Já o segundo, que levanta a bandeira do globalismo, é composto por membros
essencialmente "progressistas" no sentido amplo do termo: tem uma visão crítica,
quando não claramente hostil, dos valores tradicionais, promovem o multiculturalismo e
acreditam numa liderança compartilhada e limitada por uma ordem internacional
centrada no conceito da ONU. Estão abundantemente representados na ala progressista
do Partido Democrata: vão desde ativistas de direitos civis, a ONGs e as já citadas
fundações bilionárias, além de diversas multinacionais e banqueiros interessados nos
ganhos financeiros da globalização.
Entre as figuras emblemáticas desse grupo, podemos citar os ex-presidentes Jimmy
Carter e Bill Clinton (e seu vice, Al Gore), além do magnata David Rockefeller, o
financista George Soros e o economista Paul Krugman, para citar os "não políticos".
Embora os dois grupos sempre contassem com representantes em ambos os partidos,
nos últimos tempos, tem havido uma polarização mais clara, em especial, devido ao
advento do Tea Party. Essa polarização, de certa forma, ajuda a enxergar melhor o
posicionamento ideológico, antes camuflado no debate partidário.
Como fica claro para observadores mais atentos, é esse o por que de Barack Obama, um
progressista, sofrer tanta oposição dos membros do "Tea Party".
Hoje, os Estados Unidos da América são um país rachado por uma "grande batalha". E é
essa "grande batalha" que explica como um problema econômico secundário ganhou
uma dimensão tão grande e ares tão catastróficos. É a política, mais uma vez, ditando os
rumos da economia mundial!
Rodrigo Sias é economista. E-mail: rsias@bndes.gov.br

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