*José Álvaro de Lima Cardoso
O mundo
tem visto, perplexo e temeroso, os acontecimentos na Ucrânia e as imagens de
tropas do exército russo se dirigindo para a imensa fronteira entre os dois
países. Ainda que num processo desse tipo a primeira a ser sacrificada seja a verdade
dos fatos, o risco de uma guerra parece ser premente. Não se trata de um
conflito localizado e de caráter regional. O país tem posição geográfica
privilegiada, no Sudeste da Europa, e é o segundo maior país do
continente, depois da Rússia. Além disso o país tem 1.576 km de fronteira com a
Rússia, o que também o torna objeto de atenção geopolítica dos países
imperialistas, no contexto mundial da disputa entre potências. A ucrânia possui
também população expressiva, de 44 milhões, quase equivalente à da Espanha.
O
problema imediato principal no conflito são as tratativas do país para
ingressar na OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o que interessa
diretamente os países imperialistas, especialmente aos EUA, cujo governo, sob
Biden, resolveu correr atrás do espaço perdido internacionalmente, nas últimas
décadas. A Ucrânia na OTAN, com possibilidade concreta de armazenar armamentos
pesados, sem dúvida ameaça a segurança estratégica da Rússia. É quase como que
Cuba alojar bombas nucleares russas em seu território, a 150 KM de Miami.
Enquanto um
movimento desse intrincado tabuleiro de xadrez, no
dia 18 de janeiro a Rússia exigiu que a
OTAN garanta que Ucrânia e a Geórgia, que também faz fronteira com a Rússia, não
ingressem na Organização militar. Esse detalhe é fundamental, porque o artigo
quinto do Tratado da OTAN, prevê que se um país-membro for atacado
militarmente, é como se o conjunto dos membros tivessem sido atacados. A Rússia
exigiu também que os EUA parem de realizar manobras militares na Europa do
Leste, nas barbas de Moscou. Imaginem a reação dos EUA, se Rússia ou China
começassem a fazer treinamento militar no território da Venezuela ou da Nicaragua.
Um míssil disparado a partir de Kiev levaria apenas alguns minutos para alcançar
Moscou.
O governo
russo nega que esteja pretendendo invadir a Ucrânia e afirma que o deslocamento
de tropas para a fronteira tem caráter preventivo. Mas se nenhum dos dois lados
recuar, a chance de um conflito grave é muito grande. No caso da Rússia a possibilidade
de recuo é ainda mais remota porque, concretamente, a entrada da Ucrânia na
OTAn representa um risco real e direto à segurança do país, que o governo russo
tanto preserva.
O governo
dos EUA, ao mesmo tempo em que fornece assistência militar ao governo de Kiev, faz
um jogo de cena de que estaria tentando ao máximo evitar o conflito. Os EUA
querem impor uma visão de democracia formal, alegando o direito de a Ucrânia
fazer parte, como pais soberano, de qualquer organização que deseje. Mas este é
um protocolo que não leva em conta a geopolítica e o mundo real dos riscos da guerra,
numa região que é um verdadeiro barril de polvora.
Recentemente, em uma visita a Kiev, o
secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, previu que a Rússia pode
lançar um novo ataque sobre a Ucrânia em um “prazo muito curto”. Prometeu
também, caso haja a invasão impor severas sanções econômicas contra a Rússia. A
reunião entre Blnken e o ministro russo de Relações Exteriores, Sergei Lavrov,
no dia 21/01, apesar das promesas recíprocas, foi muito mais um jogo de cena do
que uma ação efetiva para desarmar a bomba relógio do conflito.
As
possibilidades táticas da Rússia são várias: é possível uma incursão armada no
país, a superioridade militar da Rússia sobre a Ucrânia é imensa. Pode também
fazer ataques cibernéticos, campanhas de contra informações, etc., ou, o que é
mais provável, combinar todas essas formas de guerra híbrida. O governo Joe Biden
vem pedindo uma posição firme da União Européia (EU) sobre sanções econômicas à
Moscou. Mas o Bloco não tem unidade sobre o assunto, inclusive tem medo de
prejuízos às suas próprias economias. Há também um aspecto fundamental para a
União Europeia que é o fornecimento de gás da Rússia. No que refere ao gás o
governo estadunidense promete ajudar a Europa, mas qual o custo financeiro de
uma ajuda desse tipo, em meio a uma grave crise econômica?
O governo norte-americano tem afirmado que o
Kremlin está considerando a possibilidade de uma operação de "false
flag" (bandeira falsa), ou seja, estariam pretendendo realizar um ataque
ao próprio país, através de agentes russos. Vamos combinar que os norte-americanos
têm grande conhecimento de causa sobre o assunto, pois já utilzaram a “bandeira
falsa” inúmeras vezes. Por exemplo, em 1964 o Congresso dos EUA autorizou o presidente da
república a ampliar a participação dos Estados Unidos na guerra do Vietnã, supostamente
em decorrência de um ataque vietnamita a um navio de guerra dos EUA em águas do
golfo de Tonkin. Na ocasião, apesar dos Estados Unidos apoiar politica,
financeira e militarmente o Vietnã do Sul, ainda não estava em aberta
hostilidade contra o Vietnã do Norte. A Resolução do Golfo de Tonquim
deu autorização legal ao presidente Lyndon
Johnson para entrar com toda a força na guerra. Não adiantou,
claro, o governo do Vietnan do Norte dar várias declarações oficiais de que
houve apenas uma reação mínima, protocolar, ao fato de que navios de de guerra dos
EUA entraram em suas águas territoriais para espionar e planejar futuros
ataques.
Temos que
procurar entender a política do governo de Joe Biden (econômica, política e
militar), olhando a situação mundial de conjunto. Além de uma crise econômica
extraordinária, o polo político que Biden representa está também em grande
agonia.Se as eleições presidenciais fossem hoje, é possível que Donaldo Trump
ganhasse. A crise é muito significativa, o mundo parece estar caminhando para
uma situação de verdadeiro colapso político e econômico, como poucas vezes se
viu na história.
Apesar de
muitos acharem que Joe Biden era um “democrata” ou “progressista”, seja lá o
que significam estes conceitos, na realidade ele é um homem muito mais ligado à
máquina de guerra norte-americana, do que era Donaldo Trump, por exemplo. Vamos
lembrar que, quando o Brasil sofreu o golpe de Estado em 2016, inclusive com
antecedentes de espionagem norte-americana nos telefones da presidente da
República do Brasil, Biden era o vice de Obama. E certamente sabia das
articulações do golpe, não só no Brasil, mas em toda a América Latina.
Há uma
avaliação por parte do governo Biden, explicitada desde o primeiro dia de
gestão, de que a China está ocupando um espaço econômico exagerado, desproporcional
ao seu poderio geopolítico e militar no mundo. Poderio econômico e poder bélico
são fatores intimamente interligados. Portanto, a relação com a China, mas
também com a Rússia, já ficou muito mais tensa, em função da postura dos EUA em
relação a comércio, direitos humanos e as origens da Covid-19. No ano passado os
Estados Unidos colocaram na lista maldita dezenas de empresas chinesas, utilizando
meros pretextos.
Com Biden, os norte-americanos deverão promover
uma série de conflitos militares no mundo, “por procuração” com outros grupos, tropas
irregulares, mercenários, como fizeram na Síria e inúmeros outros países. Tem
aumentado muito a hostilidade dos EUA contra a Nicaragua, Cuba e Venezuela. O
objetivo é estimular a oposição interna para, apoiado pela OTAN (organismo
dominado pelos EUA), partir para agressões militares. Joe Biden foi o candidato
da máquina de guerra norte-americana: Pentágono, falcões, Cia e demais serviços
de espionagem, forças armadas, grande capital imperialista, etc. Ou seja, a
essência da política imperialista apoiou Biden. Trump presidente, comparado com
Biden, era um “estranho no ninho”, acusado, inclusive, de aproximação com a
Rússia.
O padrão de vida conquistados pelos
norte-americanos está relacionado à sua ação imperialista no mundo todo. Então,
ao mesmo tempo em que eles tem que se preocupar com a disputa geopolítica com a
Rússia, estão de olho no tabuleiro político latinoamericano. Não é nada
específico contra a Rússia ou China. É que atuam como um Império que são, e
aqueles são seus principais rivais. Se quisermos entender a natureza da
“democracia” nos países imperialistas, precisamos saber que o orçamento militar
dos EUA para este ano, de US$ 768 bilhlões, é superior aos orçamentos militares
somados dos 10 países seguintes com os maiores orçamentos.
Diferentemente da Rússia e China, que são
potência regionais, os Estados Unidos, além de suas frotas de porta aviões,
navios e submarinos nucleares que cruzam os mares de todo o mundo, possuem mais
de 700 bases militares terrestres fora de seu território nacional nos mais
diversos países (inclusive no Brasil). Eles conseguiram essas bases através de tratados
e do peso econômico da economia norte-americana, do imperialismo
norte-americano. Russos e os chineses não têm esse poderio. Uma das razões dos
EUA terem encaminhado o golpe no Brasil foi a aproximação com a Rússia e a
China através dos BRICS. Em 2015, antes do impeachment, o Brasil tinha assinado
com a China 35 grandes projetos de infra-estrutura no país, incluindo a Ferrovia
Transocenianica, ligando o Atlântico ao Pacífico, ligando o Brasil (RJ) à Lima,
no Peru.
Um sintoma de que a política do “grande
porrete” dos EUA funciona nas relações internacionais, foi o quase sepulcral silencio
da China e da Rússia, em relação ao golpe no Brasil, assim como nos demais
países da América do Sul. A China perdeu uma porção de negócios na América
Latina toda, por causa dos golpes, mas não se manifestou mais fortemente, com
receio da reação dos EUA.
Os norte-americanos querem obrigar Rússia e
a China a recuarem das posições geopolíticas que eles adquiriram no último
período. Eles vão procurar fazer com que os russos e os chineses gradativamente
cedam terreno, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista econômico.Como
potência regional e considerando a importância geoestratégica da Ucrânia para a
Rússia, é muito difícil os russos recuarem. As guerras realizadas pelos Estados
Unidos no mundo, deixam um saldo terrível de mortes e miséria, inclusive na
época de Obama, que, hipocritamente, recebeu o Nobel da Paz. O risco de uma guerra não pode ser
subestimado. Este risco deve ser colocado como o mais elevado porque as suas
consequências são terríveis. O momento em que vive a economia e a políticas
mundiais, coloca com muita força essa possibilidade. A tensão mundial entre de
um lado o bloco imperialista e, de outro, China e Rússia, e a crise na Ucrânia, não significa que haverá guerra com
certeza. Mas a luz amarela está acesa para quem tem olhos e ouvidos abertos.
*Economista, 24.01.2022.
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