quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Escravidão moderna e seus guardiões

 

*José Álvaro de Lima Cardoso

     A forma mais eficiente de dominação de uma classe social sobre as demais, se desenvolve quando as características da dominação pareçam “naturais”, absolutamente “normais”. Quando no Brasil vigorava a escravidão, essa não só era tida como natural pela maioria da população, como também não faltava quem se ocupava em listar argumentos defendendo as “vantagens” do sistema escravocrata. Segundo alguns desses argumentos, como as pessoas são diferentes, seria “natural” que os mais inteligentes, com maior conhecimento, possuídos de maior moralidade, ou mais fortes fisicamente, escravizassem os inferiores nesses quesitos. Durante todo o longo período de escravidão no Brasil não faltaram “especialistas” que listavam grandes vantagens da existência do sistema. Alguns autores iam mais longe e “provavam” que o fim da escravidão no Brasil encaminharia a economia brasileira para o colapso.

     Segundo a Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, neste ano o Brasil irá gastar quase meio trilhão de reais com a dívida pública, cujos credores são cerca de 20.000 famílias de ultra milionários, sendo que boa parte deles nem mora no país. É um dispêndio em torno de R$ 1,1 bilhão de reais todo santo dia, transferido para cerca de 200.000 pessoas. Isso funciona assim há muitas décadas e pouca gente comenta o assunto. É como se tal transferência de recursos, principal causa do déficit público, fosse um mandamento bíblico, ou estivesse escrito em bronze nas estrelas. Quando o tema aparece nos cadernos de economia da grande imprensa, as abordagens são sempre no sentido de defender os pagamentos da dívida. Qualquer ideia que proponha discutir os fundamentos do problema sofre pesada crítica dos “analistas” desses meios, na prática fiéis porta vozes dos banqueiros.

     Na outra ponta, os jornais da mesma imprensa comercial alardeiam, quase todo santo dia, que o governo gastou tantos bilhões com o Auxílio Emergencial, o que, segundo tal abordagem, pode estrangular a gestão da dívida pública, tornar o Estado insolvente, ou provocar inflação. Ciente do que pode esperar do Estado capitalista, no início da pandemia Paulo Guedes não queria conceder nada a título de Renda Emergencial para a população. Mesmo tendo ciência de que se avizinhava uma crise econômica e sanitária de proporções inéditas no país. A proposta do governo era zero de auxílio, as pessoas que ficassem sem renda que “se virassem”. Depois de um enfrentamento no Congresso, chegou-se ao valor de R$ 600,00, sendo que uma parte do dinheiro, inclusive, nunca chegou no bolso de uma parte dos trabalhadores, por razões variadas.

     Ao mesmo tempo, e sem pestanejar, o governo liberou R$ 1,216 trilhão para os banqueiros, ainda em março, valor que chegou rapidamente ao seu destino. O objetivo do recurso, equivalente à 17% do PIB, era o de “manter a liquidez no sistema”, isto é, a disponibilidade de dinheiro para que os bancos pudessem operar normalmente. Essa diferença radical de tratamento (entre trabalhadores pobres e bancos muito ricos) foi encarada por 99,5% dos brasileiros (os que tomaram conhecimento do fato), como “absolutamente natural”.

      A naturalização da exploração é tão grande, que uma parte dos dirigentes partidários, mesmo nas agremiações de esquerda, está defendendo os R$ 600,00 como uma “renda mínima” de dignidade para o trabalhador desempregado ou subempregado. Mas, será que esse valor pode mesmo dar dignidade para um trabalhador açoitado pelas necessidades humanas? Segundo o DIEESE, em 7 das 17 capitais pesquisadas, a cesta básica está custando mais do que de R$ 500,00. Essa não é uma cesta para uma família e sim para uma pessoa adulta suprir suas necessidades alimentares básicas.

     Há muitos anos o movimento sindical brasileiro tem uma referência de salário mínimo “necessário” para o trabalhador e sua família suprirem suas necessidades básicas, que são previstas pela Constituição Federal desde 1946. Com o referido cálculo, que é bastante simples, o DIEESE procura chegar a um valor do salário mínimo necessário para o trabalhador suprir o que está previsto na Constituição Federal em seu Artigo 7º, inciso VI, que estabelece como um direito dos trabalhadores da cidade e do campo. Atualmente o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE é de R$ 4.892,75, o que corresponde a 4,68 vezes o salário mínimo vigente de R$ 1.045,00. Este é o mínimo necessário para uma família de 4 pessoas (dois adultos e duas crianças) suprirem suas necessidades alimentares mensais.

     O Brasil tem 29,4 milhões de trabalhadores de carteira assinada no setor privado, o menor número já registrado na série histórica, iniciada em 2012. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE. O salário médio desses trabalhadores de carteira assinada, que são uma “elite” no Brasil (dado o processo de destruição do mercado de trabalho), é atualmente de R$ 2.535,00. O fato deste salário, ser equivalente a 56% do salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE, é encarado como algo absolutamente natural.

     No início deste mês, num intervalo de uma rodada de negociação coletiva, em conversa com um executivo de uma grande empresa brasileira (que paga bem pouco aos seus operários), eu mencionava alguns dados preocupantes sobre o fenômeno da fome no Brasil. Como por exemplo, o absurdo de que no segundo maior produtor de alimentos do mundo, 41% da população sofra, em algum nível, de insegurança alimentar. Na conversa afirmei que o fato, por si só, resume o abissal atraso econômico, político, e social do Brasil. Seria o preço a pagar pelo nosso subdesenvolvimento. O meu interlocutor imediatamente discordou da afirmação e lembrou que há estudos que revelam que a fome existe em todos os países do mundo e, em boa parte, faz parte da natureza das sociedades modernas. Portanto, para ele, seria “natural” que, mesmo em sociedades industrializadas e desenvolvidas, permaneça uma parcela razoável da população que passe fome com regularidade.

     A expressão “natural”, nesses casos, vem também com o sentido de “imutável”, sempre foi assim e sempre será. Como era no tempo da escravidão: os defensores do sistema afirmavam que era um sistema natural, portanto a ação humana não poderia alterar. Dessa conversa com o diretor da empresa ficou o aprendizado prático: por piores que sejam as condições de exploração de uma classe social sobre a outra, por mais sórdidas que sejam as formas de dominação, sempre haverá setores de classe média, que se beneficiam em parte do funcionamento do sistema social, que o defenderão com ainda mais veemência do que os próprios detentores do Capital.                                                                                                   

                                                                                                *Economista 21.10.20.

Nenhum comentário:

Postar um comentário