*José Álvaro de Lima Cardoso
O país
atravessa uma crise hídrica que afeta diretamente o nível dos reservatórios dos
subsistemas elétricos. De acordo com o último boletim divulgado pelo Operador
Nacional do Sistema (ONS), divulgado em 10/09/21, os reservatórios das Usinas
Hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste estão operando com apenas 22,7% de
sua capacidade de armazenamento. Esses reservatórios, que são responsáveis por
cerca de 70% da geração hídrica do país, apresentam os níveis mais baixos dos
últimos 91 anos. Os especialistas mencionam redução do nível dos reservatórios que
pode chegar à 10%, o que seria muito grave, já que o sistema elétrico
brasileiro nunca operou abaixo de 15%.
Devido à
sua indiscutível essencialidade a água está sempre no centro da luta entre as
classes na sociedade, aqui e no mundo todo. O fato do Brasil deter os maiores
mananciais do mundo, não nos livra de uma guerra pelo uso da água, ao contrário.
Em junho do ano passado (24.06.20), o Senado
Federal aprovou a lei 4.162/2019, que trata da privatização do setor de
saneamento no Brasil. Segundo essa lei, a partir de março de
2022, todos os contratos de prestação de serviços de saneamento (o que inclui
distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto e resíduos) existentes
entre os municípios brasileiros e as estatais de saneamento, em sua maioria,
poderão ser revisados e reavaliados. Ao invés de continuarem a existir os
contratos de programa, será obrigatório a realização de editais de licitação entre
empresas públicas e privadas, o que poderá significar, ano, a partir do ano que
vem, a privatização da maioria dos serviços de saneamento no país.
Como
funciona o sistema de fornecimento de água nas cidades, atualmente? As cidades
firmam acordos direto com empresas estaduais de água e esgoto pelo chamado
contrato de programa, que contêm regras de prestação e tarifação, mas permitem
que as estatais assumam os serviços sem concorrência. O novo marco extingue
esse modelo, transformando-o em contratos de concessão com a empresa privada
que vier a assumir o serviço, e torna obrigatória a abertura de licitação
envolvendo empresas públicas e privadas. Cerca de 71% dos Municípios
brasileiros possuem contratos de programa com os respectivos Estados da
Federação em relação a tratamento e abastecimento de água, enquanto apenas 2%
fizeram licitações para concessões plenas e 27% fornecem esses serviços de
forma autônoma. Ou seja, há um enorme espaço para empresas privadas ganharem
dinheiro.
O novo marco legal unifica a direita
“civilizada” e a extrema direita que está no governo federal. Ele transforma
serviços que devem ser considerados direitos humanos básicos e universais –
como o acesso à água potável, a destinação correta de resíduos e o tratamento
de esgoto de modo a preservar o meio ambiente – em passivos que devam gerar lucros
e dividendos. As empresas privadas apenas terão interesse em atuar em regiões
lucrativas, deixando regiões não rentáveis de fora da cobertura. O senador
Tasso Jereissati (PSDB/CE), autor do Projeto de Lei 4.162/2019, é direta e
financeiramente, interessado na privatização dos serviços de água e saneamento
no Brasil. É a legítima raposa cuidando do galinheiro. Ele é um dos sócios do
Grupo Jereissati, que comanda a Calila Participações, única acionista
brasileira da Solar. Esta última empresa é uma das 20 maiores fabricantes de
Coca-Cola do mundo e emprega 12 mil trabalhadores, em 13 fábricas e 36 centros
de distribuição.
Água é a matéria-prima mais cara para a
produção de bebidas em geral. Para cada litro de bebida produzido, por exemplo,
a Ambev declara usar 2,94 litros de água. Não existe nenhuma transparência nas
informações divulgadas, mas ao que se sabe, as empresas de alimentos e bebidas
contam com uma condição privilegiada no fornecimento de água e esgoto. Obtendo,
por exemplo, descontos. Mas foram essas mesmas empresas que estiveram à frente
da aprovação do novo marco regulatório, possivelmente porque avaliam que, com o
setor privatizado, pagarão ainda menos pelos serviços.
O
Brasil foi abençoado com as maiores reservas de água do mundo. Os
principais aquíferos do
país são: Guarani, Alter do Chão – os maiores do mundo –, Cabeças, Urucuia-Areado e Furnas. No
começo de 2018, o golpista Michel Temer encontrou-se com o, então, diretor presidente
da Nestlé, Paul Bulcke, para uma conversa “reservada”. Não é preciso ser muito
sagaz para concluir que o tema da conversa foi um pouco além de amenidades.
Alguns meses depois, o governo Temer enviou ao Congresso uma Medida Provisória
844, que forçava os municípios a concederem os serviços, medida que não foi
aprovada. No último dia de mandato Temer editou a MP 868, que tratava
basicamente do mesmo assunto. Esta MP perdeu validade, mas o PL 4.162/19,
aprovado no senado no ano passado, basicamente retomou o que constava daquelas
medidas provisórias.
A
pressão para privatização da água é muito forte, conta com organizações
financiadas pelos grandes grupos interessados, especialmente do setor de
alimentos e bebidas, e conta com cobertura do Banco Mundial. Sabe-se que a
Coca-Cola disputa água no mundo todo e certamente não o faz por razões
humanitárias. Tem vários casos envolvendo a Coca-Cola no mundo. Há relatos de
que no México, regiões inteiras ficam sob “estresse hídrico” por causa de
fábricas da empresa, que inclusive contam com água subsidiada. Existem cidades
no México, nos quais os bairros mais pobres dispõem de água corrente apenas em
alguns momentos, em determinados dias da semana, obrigando muitas vezes a
população a comprar água extra. O resultado é que, em determinados bairros, os
moradores tomam Coca-Cola, ao invés de água, por ser aquela mais fácil de
conseguir, além do preço ser praticamente o mesmo. Há moradores destes locais
que consomem 2 litros de refrigerante por dia, com consequências graves e inevitáveis
sobre a saúde pública.
Sobre
o projeto de privatização das fontes de água no Brasil quase não se ouve
posições contrárias (como acontece com tudo que é importante). Estas são
devidamente abafadas pelo monopólio da mídia comercial (uma das mais
entreguistas do mundo). Exceto nos sites especializados e independentes. É que
na área atuam interesses muito poderosos, com grande influência no Congresso
Nacional, nos Governos, nas associações de classes, empresariado,
universidades.
Os encontros realizados para discutir o
assunto são patrocinados por gigantes, verdadeiros monopólios em seu setor,
como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, que têm interesses completamente antagônicos aos
da maioria da sociedade. Essas empresas investem uma parcela de seus lucros com
propaganda, vinculando suas imagens a temas como sustentabilidade ambiental e
iniciativas sociais, de acesso à água, e outras imposturas. Apesar de tudo isso
ser jogo de cena para salvar suas peles e exuberantes lucros, enganam muitos
incautos.
O fato de que, no país que detém 12% de
todas as reservas de água doce do mundo (a maior reserva entre todos os
países), uma parcela significativa da população não tenha acesso regular à água
potável e barata, já revela o tamanho do problema.
*Economista,
15.09
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