Por André Barrocal
O Brasil de Michel Temer pediu no ano passado adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, um clube de 35 nações ricas ou simpatizantes, mas, por enquanto, passa vergonha, pois os Estados Unidos preferem a entrada da Argentina de Mauricio Macri, amigo de Donald Trump. Em 15 de junho, a OCDE foi motivo de outro embaraço nacional, por razões um pouco mais antigas do que o governo Temer.
Ao estudar como tem sido a mobilidade social desde a década de 1990, a entidade constatou que a coisa vai mal mundo afora e pior ainda por aqui. A distância entre ricos e pobres aumenta no planeta, especialmente desde a crise financeira global de 2008. É cada vez mais difícil que alguém nascido na pobreza melhore de vida e alcance o padrão médio dos conterrâneos.
Nesse quesito, o Brasil figura em penúltimo lugar em um ranking de 30 países, ao lado da África do Sul e à frente apenas da Colômbia. De cada 10 filhos de famílias brasileiras miseráveis, 3,5 morrerão miseráveis e somente um tem chance de chegar ao topo.
Para quem já está no topo, esta terra em que se plantando tudo dá é, ao contrário, uma delícia. Quase metade dos descendentes dos endinheirados tende a prosperar, e andar para trás é um risco para bem poucos.
“No Brasil, as circunstâncias dos pais desempenham um fator importante na vida das pessoas. O status econômico e social transmite-se fortemente através das gerações”, diz a OCDE na pesquisa “Elevador social quebrado?” A reprodução do status através do berço é, certamente, o caso do 1% mais rico do Brasil. Por aqui, essa turma leva para a casa uma fatia da renda nacional com uma gula peculiar, e tem sido assim há quase um século.
É o que conta uma tese de doutorado em sociologia apresentada na Universidade de Brasília, a UnB, em 2016, com o título “A Desigualdade Vista do Topo: a Concentração de Renda Entre os Ricos no Brasil, 1926-2013”, ganhadora no ano passado do prêmio de melhor tese do ramo.
Segundo seu autor, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os brasileiros do 1% embolsam historicamente de 20% a 25% da riqueza nacional, com uma média anual de 23%, enquanto em outras nações marcadas pela desigualdade, como EUA e Colômbia, a mordida é de 20% para baixo.
“Tamanha concentração destoa dos padrões internacionais e coloca sempre o Brasil entre os países mais desiguais dentre aqueles com dados disponíveis. Com isso, não é exagero reafirmar que o quinhão apropriado pelos ricos é o traço marcante da desigualdade brasileira”, anota Pedro Herculano.
Quer dizer, se o mundo tem se tornado mais desigual, como observa a OCDE, o Brasil é pioneiro no assunto, uma espécie de inspiração para os magnatas do planeta.
Mas quem são esses brasileiros do 1%? É possível ter uma ideia, graças a dados coletados pelo IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Da população de 207 milhões de pessoas, o Brasil tinha no ano passado 124 milhões com algum tipo de renda – trabalho, aluguel, aposentadoria, pensão, mesada, Bolsa Família, e por aí vai. O tipo mais importante, pelo número de envolvidos e pelo volume de dinheiro gerado, era o trabalho, fonte de provento para 86 milhões de indivíduos.
Dentro dessa categoria de rendimento, o 1% mais rico abiscoitou, em média, 27 mil reais por mês, uma cifra quase igual à de 2016. Um clube vip de 860 mil brasileiros. As pistas para identificá-los estão em estatísticas que a Receita Federal divulga desde 2015 a respeito do Imposto de Renda. São sócios e dirigentes de empresas, donos de cartórios, juízes, promotores e procuradores de Justiça, médicos, diplomatas, advogados.
No ano passado, 28 milhões de contribuintes prestaram contas com o Leão por ganhos obtidos em 2016. Os titulares de cartório, 9,6 mil ao todo, declararam renda mensal média de 100 mil. Juízes, promotores, procuradores e membros de tribunais de contas, um total de 35 mil pessoas pagas com verba pública, desfrutaram de 51 mil.
Diplomatas e afins, contingente de 2,2 mil também remunerado pelo Erário, gozaram de 36 mil. Detalhe: donos de cartórios, membros do sistema de Justiça e diplomatas informaram patrimônios milionários, variável de 1,3 milhão a 1,6 milhão de reais por cabeça, em média.
Os médicos, tropa de 351 mil pessoas, tinham, em média, 28 mil de renda mensal e 850 mil em bens. Os advogados a serviço de órgãos públicos, 28 mil indivíduos, possuíam renda de 27 mil por mês, em média, e bens de 549 mil.
No caso de quem se apresentou ao Fisco como dirigente de firmas industriais, comerciais e prestadoras de serviços, a renda média de 12 mil mensais não garante carteirinha do clube do 1%.
Mas informações apresentadas obrigatoriamente à Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, por companhias com ações negociadas na Bolsa permitem ver a pulseira vip no pulso ao menos dos dirigentes dessas companhias. O custo médio delas com 1,3 mil executivos no ano passado foi de 137 mil reais, conforme noticiado em maio pelo jornal Valor.
A turma do 1% levou para casa, no ano passado, 36 vezes o que ficou com a metade mais pobre dos brasileiros, sendo este último grupo formado por pessoas com renda média de 750 reais mensais. Quer dizer, quem embolsa 27 mil por mês pode espernear que é “apenas” classe média, mas, diante do nível de renda de um país de 207 milhões de habitantes, o esperneio é pura modéstia.
São ricos, sim. A casta do 1% goza de certos privilégios para garantir sua reprodução através das gerações que não se resume a grana. É o que o sociólogo Jessé Souza, ex-presidente do Ipea, chama de “capital cultural”, conceito desenvolvido por outro sociólogo, o francês Pierre Bourdieu, morto em 2002.
Por esse conceito, quem nasce em berço de ouro recebe em casa, digamos, ferramentas afetivas e emocionais que preparam a pessoa para que suas habilidades e capacidades possam florescer ao longo da vida. É bem mais do que educação, esta citada na pesquisa da OCDE como fator-chave para explicar a pouca mobilidade social no Brasil.
Segundo Jessé Souza, é errado achar que toda pessoa que nasce, não importa onde, é dotada do mesmo potencial. Esse potencial depende do tipo de socialização familiar. Os endinheirados, por exemplo, podem comprar tempo livre tanto para si, ao contratar quem cuide do filho, quanto para o próprio filho, ao dar-lhe sustento sem que ele tenha de trabalhar desde cedo para ajudar em casa, como acontece com os filhos da pobreza.
Uma criança que fica em casa tem mais chance de desenvolver, por exemplo, a capacidade de concentração, “que não é algo natural, é um privilégio de classe”, na visão de Jessé Souza. Democratizar o capital cultural seria a coisa mais importante nas sociedades democráticas modernas, pois o capital econômico é concentrado em todo lugar, diz.
Uma necessidade bem maior no Brasil, onde esse capital cultural é ainda mais concentrado do que na Europa, uma constatação que deveria ser levada em conta, segundo Souza, nas análises do economista francês Thomas Piketty, um dos mais renomados estudiosos da desigualdade no mundo.
Foi após o lançamento do badalado livro de Piketty, O Capital no Século XXI, publicado em 2013 na França e em 2014 por aqui, que a Receita passou a divulgar algumas estatísticas sobre o Imposto de Renda que agora permitem ter uma noção de quem faz parte da casta do 1% no Brasil.
O País tinha ficado de fora do livro, uma obra que examinou a concentração de renda pelo globo, exatamente por falta de dados disponíveis. Ao examinar as estatísticas do Leão, o economista Fernando Nogueira da Costa, vice-presidente da Caixa Econômica Federal de 2003 a 2007, é mordaz.
“Poder é ter o poder de determinar a própria renda”, diz. Em outras palavras, quanto mais perto dos polos de poder, mais perto da casta do 1%. Juízes e procuradores de Justiça são exemplos disso. Em março, fizeram protestos contra o julgamento do auxílio-moradia e tiveram sucesso em salvar a mordomia. Jornalistas e repórteres, 55 mil soldados do poder midiático que prestaram constas ao Fisco, tiveram renda média de 17 mil reais por mês.
Um patamar que garante a categoria entre os 10% mais ricos, formados por quem ganhou 9 mil ou mais por mês em 2017, conforme o IBGE. Quem não faz parte explicitamente do poder, comenta Costa, tem “como boa ocupação cuidar, inclusive da diversão, dos poderosos: médicos, pilotos, atores, jogadores de futebol…”.
A renda média dos médicos já se viu. A dos pilotos de avião e de comandantes de navio foi de 23 mil reais por mês em 2016. A dos atletas e desportistas, de 22 mil. A de atores e diretores de espetáculos, de 19 mil.
De volta a Piketty. De passagem pelo Brasil, em setembro de 2017, para palestras em São Paulo e Porto Alegre, ele esboçou sua visão sobre as razões da concentração de renda no País, agora que dados começam a aparecer. Vê duas causas históricas principais.
O fato de a escravidão ter demorado para acabar (o Brasil foi o último a abolir essa coisa perversa) e a pouca cobrança de imposto dos ricos, uma arrecadação que, se fosse maior, proporcionaria ao Estado verba para ampliar investimentos capazes de dar melhores condições ou perspectivas de vida aos mais pobres, como nas áreas de educação e saúde.
Na recente pesquisa da OCDE sobre mobilidade social, há umas recomendações parecidas sobre o que fazer, como ampliar os investimentos em educação (sobretudo na de base) e em saúde – o que vai ser difícil com o congelamento de gastos sociais por 20 anos aprovado pelo governo Temer –, além de reformar o sistema tributário.
“A elite sempre tem um monte de desculpas para não pagar impostos, e isso também ocorre em outras partes do mundo. A questão é saber por que a elite no Brasil tem sido bem-sucedida ao evitar mudanças no sistema tributário”, disse Piketty em uma entrevista quando veio aqui em 2017.
O Brasil tem tradição de taxar mais o consumo e menos a renda e a propriedade, ao contrário do padrão visto entre os países da OCDE. Os ricos agradecem, pois a fatia que gastam com comida, transporte e roupas é proporcionalmente bem menor do que acontece numa família pobre, obrigada a gastar tudo para sobreviver.
Eles se alimentam, sobretudo, de uma jabuticaba, cujo tamanho pode ser medido nas estatísticas da Receita sobre o Imposto de Renda. Os ricaços daqui, a turma do 1%, se esbaldam com uma isenção fiscal dada por uma lei de 1995, primeiro ano do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Quem é sócio de uma empresa e recebe lucros e dividendos dessa empresa não precisa, como pessoa física, pagar IR sobre esse ganho.
A justificativa? Cobrar imposto seria bitributação, pois a empresa já foi taxada enquanto pessoa jurídica. Misericórdia igual a essa só na Estônia. A bolada protegida do Leão é uma fábula. Uns 350 bilhões de reais nas declarações de IR entregues no ano passado, segundo o economista Sérgio Gobetti, do Ipea.
Gobetti e seu colega de Ipea Rodrigo Orair começaram a se debruçar sobre as estatísticas da Receita a partir de 2015 e logo constataram que, graças à isenção fiscal para lucros e dividendos, o Brasil é um paraíso para os super-ricos, um subgrupo da casta do 1% formado por umas 70 mil pessoas.
As conclusões da dupla foram publicadas em 2016 pelo PNUD, aquela agência das Nações Unidas que possui um ranking anual da desigualdade no qual o Brasil figura na 10a pior posição. “O que realmente chama atenção é que o meio milésimo mais rico concentra 8,5% da renda, nível superior ao da Colômbia (5,4%), que é um país extremamente desigual, quase três vezes maior que o do Uruguai (3,3%) e o do Reino Unido (3,4%), e cinco vezes maior que o da Noruega (1,7%)”, diz o estudo.
“Cerca de dois terços da renda dos super-ricos (meio milésimo da população) estão isentos de qualquer incidência tributária, proporção superior a qualquer outra faixa de rendimentos. O resultado é que a alíquota efetiva média paga pelos super-ricos chega a apenas 7%, enquanto a média nos estratos intermediários dos declarantes do Imposto de Renda chega a 12%.”
Entre os presidenciáveis que estão em campo, dois têm prometido taxar lucros e dividendos, caso sejam eleitos, Ciro Gomes, do PDT, e Guilherme Boulos, do PSOL. A dupla costuma citar os donos do Itaú Unibanco como exemplos de situação inaceitável. Nos últimos cinco anos, um período em que o PIB andou para trás, os três clãs que controlam o banco, as famílias Setubal, Moreira Salles e Vilela, receberam 9 bilhões de reais em dividendos.
Tudo devidamente isento de IRPF. Em uma entrevista no fim de maio à Rádio Jovem Pan de São Paulo, Boulos foi questionado sobre o “radicalismo” de suas propostas, como taxar mais os ricos, e reagiu assim: “Acho que extremista e radical é a realidade brasileira, extremismo é ter 6 bilionários que têm mais renda que 100 milhões de pessoas, extremismo é uma desigualdade brutal onde rico não paga imposto e pobre paga”.
Esses bilionários aí citados são o suprassumo, o crème de la crème, da turma brasileira do 1%. Em janeiro, às vésperas de outro convescote da elite global em Davos, nos Alpes suíços, a Oxfam, uma rede 20 organizações atuante em 90 países, divulgou mais um relatório sobre concentração de renda no mundo. Com base em estudos do bancão Credit Suisse e de dados compilados pela revista Forbes, a Oxfam informou que havia 2.043 bilionários no mundo no ano passado, dos quais 43 eram brasileiros (12 a mais do que em 2016).
As fortunas nacionais tinham no pelotão de frente o empresário Jorge Paulo Leman, dono de 27 bilhões de dólares, e seus sócios de AmBev Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, o banqueiro Joseph Safra, o jovem Eduardo Saverin, do Facebook, a família Moreira Salles, do Itaú Unibanco, os irmãos Marinho, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto, trio das Organizações Globo.
Juntos, os cinco primeiros do ranking (Leman, Safra, Telles, Sicupira e Saverin) controlavam o mesmo que a metade mais pobre do País, 100 milhões de pessoas. Até 2016, eram seis, como Boulos disse à Jovem Pan.
Outro estudo da Oxfam sobre o Brasil, “A Distância Que nos Une”, de setembro de 2017, mostrava um exemplo um pouco mais concreto de concentração de riqueza no País. Na cidade de São Paulo, 25% de todos os imóveis registrados estão nas mãos de 1% dos proprietários, um total de 22,4 mil pessoas.
Quando se vê a mesma situação a partir do valor dos imóveis, a concentração é ainda maior. O 1% controla 45%, cada indivíduo do 1% possui, em média, 34 milhões de reais em imóveis. Um novo documento, divulgado na quinta-feira 21, trouxe mais uma ilustração. Esse documento mostra como os supermercados têm esmagado os pequenos produtores rurais fornecedores de comida vendida nas gôndolas.
Hoje em dia, de cada quatro copos de suco de laranja consumidos no mundo, um sai do Brasil. O preço desse produto encareceu mais de 50% nos supermercados norte-americanos e europeus desde a década de 1990, mas o valor recebido pelos camponeses brasileiros equivale a apenas 4% do preço final.
Diante disso tudo, será que a turma do 1% topa abrir mão de seus privilégios para que a imensa maioria dos milhões de brasileiros tenha uma vida mais digna? Uma das pioneiras mundiais em estudos sobre desigualdades e atualmente vice-presidente do Conselho Internacional de Ciências Sociais, a socióloga mineira Elisa Pereira Reis, costuma dizer que, historicamente, as elites do Brasil, como também as da África do Sul, das Filipinas, de Bangladesh e do Haiti, enxergam que são afetadas por problemas causados pela pobreza e a desigualdade, mas preferem se proteger de forma individual, gastando com muros, alarmes e segurança, em vez de apoiar políticas públicas que contornem a situação.
Em sua tese sobre o 1%, Pedro Herculano escreve que “não há exemplo de país que tenha saído do nosso patamar de concentração no topo e conseguido, em condições democráticas normais, reduzi-la de forma progressiva e suave para níveis franceses ou alemães, sem rupturas ou sobressaltos. Na melhor das hipóteses, teremos de inventar algo aparentemente inédito, caso esse seja um objetivo político desejado”.
E na pior das hipóteses? “Em outros países, as elites não aceitaram pacificamente pagar mais impostos. Foi um processo caótico e violento muitas vezes”, comentou Piketty ao vir para cá em setembro. “Espero que o Brasil tenha mais sorte e possa fazer isso sem passar por choques traumáticos como as guerras.”
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