*José Álvaro de Lima Cardoso
Conforme o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de brasileiros que
enfrentam insegurança alimentar grave subiu 43,7% em cinco anos. Em 2018 havia
10,3 milhões de pessoas nessa situação, contra 7,2 mil em 2013. Segundo o IBGE,
na população de 207,1 milhões de habitantes em 2018, 122,2 milhões eram
moradores em domicílios com segurança alimentar, enquanto 84,9 milhões viviam
com algum grau de insegurança alimentar. O fato de que 41% da população
brasileira sofra, em algum nível, de insegurança alimentar, é uma síntese do
nosso abissal atraso econômico, político, e social. É o preço do nosso subdesenvolvimento,
e também do golpe de 2016.
Em qualquer país a fome
estrutural é motivo de vergonha, porque em regra ela ocorre por razões
políticas e não climáticas ou demográficas. Josué de Castro (médico, professor,
geógrafo, cientista social, político, escritor), autor dos clássicos “Geografia
da Fome” e “Geopolítica da Fome”, dizia, que a guerra e a fome são construções
humanas. Josué de Castro tem um conceito de subdesenvolvimento que revela
nitidamente essa ideia do atraso como uma questão política: “O
subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou
ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto
do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial
ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta“.
(apresentação do livro “Josué de Castro e o Brasil”, de 2008).
No seu livro “Geografia da
fome” o autor confirma sua tese de que a questão da fome é um problema da má
distribuição da riqueza e não da escassez de comida. Para Josué os processos de
colonização e dependência econômica estão diretamente ligados à geração de
pobreza e miséria extrema no mundo. Ou seja, o Brasil claramente é um país
subdesenvolvido porque é uma neocolônia, que tem que transferir permanentemente
riqueza para o centro, através de inúmeros mecanismos, mais ou menos
coercitivos. Quando forças nacionais, levantam a cabeça e tentam lutar pela soberania,
o Imperialismo se organiza e interrompe o processo, como fizeram no Brasil em
2016, e nos demais golpes recentes em toda a América Latina.
Se a fome pode ser
constrangedora para a reputação de qualquer país, no Brasil o constrangimento pela
existência da fome tem que ser levado à décima potência porque o país é o
segundo maior produtor de alimentos do mundo. Ou seja, como registra Josué de
Castro em toda a sua obra: a fome, assim como o seu fim, são decisões políticas.
Numa sociedade capitalista, para ter acesso aos alimentos é preciso ter renda.
Por isso, no combate à fome é fundamental a geração de empregos (de
preferência, formais) e o aumento do salário mínimo, dentre um conjunto de
outras ações articuladas.
A retirada do Brasil do Mapa
da Fome em 2014, é resultante de uma operação estratégica, que envolveu:
política de emprego e renda, crédito à agricultura familiar (Pronaf), expansão
da merenda escolar, política de estoques de alimentos, política de controle da
inflação, e assim por diante. Além de competência técnica e determinação, tais
políticas devem ser desenvolvidas de forma articulada, pelo Estado. O setor
privado não tem interesse e nem condições de assumir tal coordenação. As
empresas privadas no máximo farão modestas doações, e em seguida, utilizarão o
fato como instrumento de propaganda para os seus negócios.
O atual aumento dos preços dos
alimentos é muito grave porque se dá em um momento que a crise ocorre em várias
frentes: mais grave recessão econômica da história, aumento das desigualdades
sociais, taxas de desocupação 14,3 %, aumento da pobreza e da fome, crise no
balanço de pagamentos. Quem detém o poder (especialmente quando arrancado através
de golpe de Estado) tem um receio especial da inflação porque ela significa uma
transferência da crise para as camadas mais pobres da população. E, portanto,
tem grande potencial explosivo. O aumento de preços de produtos essenciais traz
um potencial de mobilização e instabilidade social muito grande. Que pode
inclusive ocorrer de forma abrupta, como revela a experiência histórica. Especialmente
em um momento histórico em que os trabalhadores estão tendo o seu couro
arrancado por centenas de medidas desde 2016.
Em duas oportunidades, no Rio
de Janeiro, em 1913 e 1949, os trabalhadores conduziram campanhas fortíssimas,
com intensa mobilização visando a organização dos trabalhadores em sindicatos, e
por direitos sociais e sindicais, que se combinaram com as lutas contra a
carestia da vida (como era chamado). Da mesma forma, o Movimento do Custo de
Vida (MCV), também conhecido como Movimento Contra a Carestia (MCC), realizado
nos anos 1970 e 1980, está entre os maiores movimentos populares levados à cabo
no Brasil. Este movimento, que surgiu no contexto das lutas populares dos anos mencionados,
mobilizou milhares de pessoas em torno da luta contra a ditadura, priorizava uma
questão fundamental que era a “carestia”. E a luta contra a carestia tinha uma
grande capacidade de envolvimento de setores mais populares.
Além do desemprego recorde, e
do aumento da fome, a carestia dos alimentos essenciais, coincide com a
destruição dos poucos colchões que visam evitar uma explosão social. O Bolsa Família
foi enfraquecido, com a retirada do cadastro de milhares de pessoas (ainda no
governo Temer), e agora com a redução do valor da Renda Emergencial (R$ 600,00
para R$ 300,00). Nesta conjuntura, de
aumento da exploração e do arrocho salarial, é fundamental garantir que o
salário sustente ao trabalhador e à sua família. O que é uma garantia,
inclusive, para o próprio Capital, de que a exploração do Trabalho se mantenha
no futuro.
Nesse quadro, o salário
mínimo, inclusive no período recente, já foi uma importante bandeira da classe
trabalhadora brasileira. No período 2003 e 2015 obteve um ganho real de mais de
75%, em função, dentre outras coisas de um acordo entre movimento sindical e o presidente
Lula. Tal política estabeleceu uma política de correção automática do salário
mínimo, com base na inflação e no aumento do PIB (Produto Interno Bruto). Por
isso chama a atenção o abandono da defesa do salário mínimo por parte da imensa
maioria da esquerda e da própria estrutura sindical. Tem gente convencida que a
proposta e o valor aprovado pelo governo Bolsonaro, do miserável auxílio
emergencial de R$ 600, para três meses (e que foi agora reduzido pela metade), resolve
o problema.
Estamos diante de uma
verdadeira tragédia nacional, com quase 150 mil mortos pela Covid-19, e mais de
85 milhões de brasileiros vivendo em insegurança alimentar. O Brasil é um país
subdesenvolvido, que sofre de um grau de exploração ainda maior do que nos
países capitalistas centrais, e no qual a população trava uma verdadeira guerra
diária pela sobrevivência. A luta é simultaneamente contra o aumento de preços
dos alimentos e por um salário mínimo que não pode ser inferior ao Salário Mínimo
Necessário calculado pelo DIEESE.
*Economista, 03.10.2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário