quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Fuga de capitais no contexto de uma crise sem fim

 

                                                                                 *José Álvaro de Lima Cardoso

     Desde 2019 o Brasil enfrenta a chamada "fuga de capitais". Esta ocorre basicamente de duas formas: 1. saída de recursos aplicados no mercado financeiro (ações, renda fixa e fundos); 2.redução do IDP (investimento direto no país): tanto na modalidade "participação no capital" (inversão em ações de empresas no Brasil) quanto na forma de "empréstimos inter companhias”. Nos primeiros oito meses de 2020, US$ 15,2 bilhões deixaram o país, o maior volume para o período desde que o Banco Central começou a realizar essas as estatísticas, em 1982. Ao mesmo tempo investidores estrangeiros retiraram R$ 87,3 bilhões da Bolsa brasileira de janeiro a 17 de setembro. O montante retirado da Bolsa é quase o dobro do registrado em todo o ano passado.

     A fuga de dólares no Brasil fez com que a Bolsa do país fosse a que mais caiu em porcentagem no mundo neste ano, até setembro, com queda de 45,2%. Além da queda na Bolsa, o mais importante indicador de desempenho na Bolsa no Brasil, o Ibovespa, apresentou a maior fuga de dólares dentre todos os índices mundiais (-18,7% até agosto). É esse movimento de saída de capitais que ajuda a explicar porque a moeda brasileira é a que registra uma das maiores desvalorizações do mundo nos últimos tempos: até agosto o dólar se valorizou 39,60% em relação ao real.

    As saídas de capitais do país já estavam fortes no ano passado, mas aceleraram o passo agora em 2020. Nas grandes crises globais como a atual, há todo um esforço para transferir o pior da crise para os países subdesenvolvidos. Na fuga de capital os grandes capitais especulativos correm para o centro imperialista, buscando segurança. O Brasil, como se sabe, não é exatamente o país mais seguro do mundo, apesar da posição absolutamente pró-capital do governo. Como o país atravessa uma “tempestade perfeita”, com crise inusitada, os especuladores temem perder dinheiro, por qualquer razão, como uma moratória técnica ou insolvência do Estado. Um país vizinho, com economia bastante próxima a do Brasil, a Argentina, declarou moratória em abril último, o que aumenta o temor dos especuladores.   

     Nos últimos anos, o ingresso de IDP (Investimento Direto no País) vinha acima de US$ 5 bilhões mensais, alcançando valores anuais na casa de US$ 80 bilhões, equivalentes a mais de 4% do PIB e capazes de cobrir os déficits correntes com o exterior. Mas os capitais externos ingressam no país em busca de lucros. Com a crise brasileira, que está no sexto ano seguido de recessão ou estagnação, é esperado que os Investimentos Diretos no País diminuam. Projeções para o ingresso de investimentos externos diretos em 2020 apontam entradas de no máximo US$ 50 bilhões - quase 40% menos do que em 2019. No ano passado, o saldo em transações correntes (que é a conta que controla a relação contábil do Brasil com o exterior) foi negativo em US$ 50,7 bilhões, enquanto para 2020 as projeções estão em torno de US$ 20 bilhões negativos.

     A fuga de capitais deve se acelerar nos próximos meses. Inclusive porque o Brasil corre o risco de ingressar num outro patamar de crise, mais grave, no ano que vem. Há grande margem para esse movimento de saída de capitais, uma vez que, mesmo com as perdas registradas em 2019 e 2020, o estoque de recursos externos aplicados no mercado financeiro brasileiro ainda totaliza US$ 400 bilhões. Uma pergunta que deve ser feita: além de dar polpudos lucros para os capitalistas, para que serve estes mais de US$ dois trilhões de reais de recursos externos? Os bancos não emprestam para o setor produtivo, estão completamente descolados da economia real brasileira. Qual a utilidade destes recursos para o país, além de forçar a economia brasileira a alimentar parasitas?

     No Brasil não há controle de entrada e saída de capitais externos (quarentena ou um tipo de pedágio para o capital que entra no país). O que é típico de país atrasado. Aqui na América Latina o Chile tem, na Ásia, a Malásia dispõe. Seria fundamental realizar controle de capitais, para preservar as economias da voracidade dos capitais especulativos, o chamado capital de motel. Esse tipo de capital, que não passa de um mecanismo de dominação e controle dos capitais sobre economias submissas, obviamente teria que ser muito bem controlado.

     Tem sido as reservas acumuladas nos governos Lula e Dilma, que impediram (até aqui) que as contas externas do país entrassem em colapso. São as reservas internacionais - de US$ 343 bilhões em agosto (R$ 1,9 trilhão) - que dão uma certa tranquilidade para o acesso a moeda estrangeira, o que é fundamental nestas horas, já que o Real não é uma moeda de aceitação internacional. Os acumulados em 12 meses das contas de capital passaram a registrar resultado negativo, a partir do terceiro trimestre de 2019. As reservas, por sua vez, que fecharam 2018 no nível de US$ 375 bilhões, em fins de agosto somavam US$ 343,5. Ou seja, as reservas vêm sendo lentamente desgastadas em face da perda líquida de capitais por parte do Brasil.

     É evidente que todo e qualquer tipo de reserva é justamente para se usar nas horas de aperto. As reservas só têm sentido se forem usadas numa hora dessas, de aperto financeiro internacional. A questão é que o Brasil está tendo problemas no Balanço de Pagamentos por uma política econômica entreguista e antinacional, que levou a economia para uma situação quase sem saída. Paulo Guedes, Bolsonaro e companhia não tem visão nacional, as políticas são sempre no sentido de favorecer o sistema financeiro internacional, a quem eles servem.

     O Brasil pós-golpe é extremamente instável e polarizado. A fuga de capitais se soma a um conjunto de instabilidades. Uma síntese dessa situação é o fato de que a fome epidêmica voltou a assombrar o Brasil, depois do golpe de 2016, com 41% da população brasileira sofrendo algum nível de insegurança alimentar (85 milhões de brasileiros), segundo o IBGE. Com a dívida pública se aproximando de 100% do PIB e a dívida de curto prazo arriscando a alcançar R$ 1 trilhão o Estado brasileiro pode cair em uma situação falimentar. Não há precedente histórico de que destruição em massa de direitos, enfraquecimento dos sindicatos, entrega de patrimônio, aumento do desemprego e da fome, tenha terminado com a polarização política e dado um rumo para o país. Como não será agora que isso acontecerá, há várias possibilidades em aberto.  

                                                                                                                 *Economista 13.10.2020

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