*José Álvaro de Lima Cardoso
A forma mais eficiente de dominação de uma
classe social sobre as demais, se desenvolve quando as características da
dominação pareçam “naturais”, absolutamente “normais”. Quando no Brasil vigorava
a escravidão, essa não só era tida como natural pela maioria da população, como
também não faltava quem se ocupava em listar argumentos defendendo as “vantagens”
do sistema escravocrata. Segundo alguns desses argumentos, como as pessoas são
diferentes, seria “natural” que os mais inteligentes, com maior conhecimento, possuídos
de maior moralidade, ou mais fortes fisicamente, escravizassem os inferiores nesses
quesitos. Durante todo o longo período de escravidão no Brasil não faltaram
“especialistas” que listavam grandes vantagens da existência do sistema. Alguns
autores iam mais longe e “provavam” que o fim da escravidão no Brasil encaminharia
a economia brasileira para o colapso.
Segundo a Lei Orçamentária Anual –
LOA/2020, neste ano o Brasil irá gastar quase meio trilhão de reais com a
dívida pública, cujos credores são cerca de 20.000 famílias de ultra
milionários, sendo que boa parte deles nem mora no país. É um dispêndio em
torno de R$ 1,1 bilhão de reais todo santo dia, transferido para cerca de
200.000 pessoas. Isso funciona assim há muitas décadas e pouca gente comenta o
assunto. É como se tal transferência de recursos, principal causa do déficit
público, fosse um mandamento bíblico, ou estivesse escrito em bronze nas
estrelas. Quando o tema aparece nos cadernos de economia da grande imprensa, as
abordagens são sempre no sentido de defender os pagamentos da dívida. Qualquer
ideia que proponha discutir os fundamentos do problema sofre pesada crítica dos
“analistas” desses meios, na prática fiéis porta vozes dos banqueiros.
Na outra ponta, os jornais da mesma imprensa
comercial alardeiam, quase todo santo dia, que o governo gastou tantos bilhões
com o Auxílio Emergencial, o que, segundo tal abordagem, pode estrangular a
gestão da dívida pública, tornar o Estado insolvente, ou provocar inflação. Ciente
do que pode esperar do Estado capitalista, no início da pandemia Paulo Guedes
não queria conceder nada a título de Renda Emergencial para a população. Mesmo tendo
ciência de que se avizinhava uma crise econômica e sanitária de proporções
inéditas no país. A proposta do governo era zero de auxílio, as pessoas que
ficassem sem renda que “se virassem”. Depois de um enfrentamento no Congresso,
chegou-se ao valor de R$ 600,00, sendo que uma parte do dinheiro, inclusive, nunca
chegou no bolso de uma parte dos trabalhadores, por razões variadas.
Ao mesmo tempo, e sem pestanejar, o
governo liberou R$ 1,216 trilhão para os banqueiros, ainda em março, valor que
chegou rapidamente ao seu destino. O objetivo do recurso, equivalente à 17% do
PIB, era o de “manter a liquidez no sistema”, isto é, a disponibilidade de
dinheiro para que os bancos pudessem operar normalmente. Essa diferença radical
de tratamento (entre trabalhadores pobres e bancos muito ricos) foi encarada
por 99,5% dos brasileiros (os que tomaram conhecimento do fato), como
“absolutamente natural”.
A
naturalização da exploração é tão grande, que uma parte dos dirigentes
partidários, mesmo nas agremiações de esquerda, está defendendo os R$ 600,00
como uma “renda mínima” de dignidade para o trabalhador desempregado ou
subempregado. Mas, será que esse valor pode mesmo dar dignidade para um
trabalhador açoitado pelas necessidades humanas? Segundo o DIEESE, em 7 das 17
capitais pesquisadas, a cesta básica está custando mais do que de R$ 500,00. Essa
não é uma cesta para uma família e sim para uma pessoa adulta suprir suas
necessidades alimentares básicas.
Há muitos anos o movimento sindical
brasileiro tem uma referência de salário mínimo “necessário” para o trabalhador
e sua família suprirem suas necessidades básicas, que são previstas pela
Constituição Federal desde 1946. Com o referido cálculo, que é bastante
simples, o DIEESE procura chegar a um valor do salário mínimo necessário para o
trabalhador suprir o que está previsto na Constituição Federal em seu Artigo
7º, inciso VI, que estabelece como um direito dos trabalhadores da cidade e do
campo. Atualmente o salário mínimo necessário calculado pelo DIEESE é de R$
4.892,75, o que corresponde a 4,68 vezes o salário mínimo vigente de R$
1.045,00. Este é o mínimo necessário para uma família de 4 pessoas (dois
adultos e duas crianças) suprirem suas necessidades alimentares mensais.
O Brasil tem 29,4 milhões de trabalhadores
de carteira assinada no setor privado, o menor número já registrado na série
histórica, iniciada em 2012. Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE. O salário médio desses
trabalhadores de carteira assinada, que são uma “elite” no Brasil (dado o
processo de destruição do mercado de trabalho), é atualmente de R$ 2.535,00. O
fato deste salário, ser equivalente a 56% do salário mínimo necessário calculado
pelo DIEESE, é encarado como algo absolutamente natural.
No início deste mês, num intervalo de uma
rodada de negociação coletiva, em conversa com um executivo de uma grande empresa
brasileira (que paga bem pouco aos seus operários), eu mencionava alguns dados
preocupantes sobre o fenômeno da fome no Brasil. Como por exemplo, o absurdo de
que no segundo maior produtor de alimentos do mundo, 41% da população sofra, em
algum nível, de insegurança alimentar. Na conversa afirmei que o fato, por si
só, resume o abissal atraso econômico, político, e social do Brasil. Seria o
preço a pagar pelo nosso subdesenvolvimento. O meu interlocutor imediatamente
discordou da afirmação e lembrou que há estudos que revelam que a fome existe
em todos os países do mundo e, em boa parte, faz parte da natureza das sociedades
modernas. Portanto, para ele, seria “natural” que, mesmo em sociedades
industrializadas e desenvolvidas, permaneça uma parcela razoável da população que
passe fome com regularidade.
A expressão “natural”, nesses casos, vem
também com o sentido de “imutável”, sempre foi assim e sempre será. Como era no
tempo da escravidão: os defensores do sistema afirmavam que era um sistema natural,
portanto a ação humana não poderia alterar. Dessa conversa com o diretor da
empresa ficou o aprendizado prático: por piores que sejam as condições de
exploração de uma classe social sobre a outra, por mais sórdidas que sejam as
formas de dominação, sempre haverá setores de classe média, que se beneficiam em
parte do funcionamento do sistema social, que o defenderão com ainda mais
veemência do que os próprios detentores do Capital.
*Economista 21.10.20.
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