*José Álvaro de Lima Cardoso
Segundo dados do IBGE,
divulgados em 17 de setembro, o número de brasileiros que enfrentam insegurança
alimentar grave subiu 43,7% em cinco anos. Em 2018 havia 10,3 milhões de
pessoas nessa situação, contra 7,2 mil em 2013. Segundo o IBGE, na população de
207,1 milhões de habitantes em 2018, 122,2 milhões eram moradores em domicílios
com segurança alimentar, enquanto 84,9 milhões viviam com algum grau de
insegurança alimentar. Reconheçamos que
o fato de que 41% da população brasileira sofra em algum nível a insegurança
alimentar é uma síntese do nosso abissal atraso econômico, político, e social.
É o preço do nosso subdesenvolvimento, e também do golpe de 2016.
Dos 84,9 milhões de
brasileiros na condição de insegurança alimentar, 56 milhões estavam em
domicílios com insegurança alimentar leve, 18,6 milhões, insegurança alimentar
moderada, e 10,3 milhões de pessoas em domicílios com insegurança alimentar
grave. Na insegurança alimentar grave, há uma redução quantitativa severa de
alimentos também entre as crianças, ou seja, uma ruptura nos padrões de
alimentação resultante da falta de alimentos, que afeta todos os moradores. Nas
zonas rurais, a insegurança alimentar grave é ainda mais comum do que nas
cidades. Quase metade das famílias do campo vivem com algum grau
de insegurança alimentar, e a no meio rural atinge 7,1%, contra 4,1%
no meio urbano.
Em 2014 o Brasil tinha deixado
o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas
para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Os números divulgados pelo IBGE nessa
pesquisa recente revelam o que já se sabia: o Brasil voltou ao Mapa da Fome, ainda que o fato não tenha sido
oficializado. O Mapa inclui países onde mais de 5% das pessoas ingerem menos
calorias do que o recomendável internacionalmente. A pesquisa evidenciou também
a desigualdade regional do Brasil. Menos da metade dos domicílios do Norte
(43%) e Nordeste (49,7%) tinham segurança alimentar, isto é, acesso pleno e
regular aos alimentos. Os percentuais eram um pouco melhores no Centro-Oeste
(64,8%), Sudeste (68,8%) e Sul (79,3%). Na Região Norte do país a insegurança
alimentar grave (10,2%) corresponde a cerca de cinco vezes a verificada na
Região Sul (2,2%).
Já se tinha conhecimento que
desde 2016 a desigualdade social tinha explodido no Brasil, como revelam todos
os indicadores de distribuição de renda (índice de Gini, rendimento domiciliar
per capita, distribuição pessoal da renda, etc). O próprio fato de que a taxa
de desemprego dobrou após o golpe de 2016, indicava nesse sentido. A expansão
do fenômeno da fome era só uma questão de tempo, e resultado quase que matemático
das políticas golpistas, dirigidas contra as poucas conquistas populares. Em
qualquer país a fome estrutural é motivo de vergonha, porque regra geral, ela
acontece por razões políticas e não climáticas ou demográficas. Mas no Brasil
esse constrangimento tem que ser levado à décima potência porque o país é o
segundo maior produtor de alimentos do mundo.
Numa sociedade capitalista, para
ter acesso aos alimentos é preciso ter renda. Por isso, no combate à fome é fundamental
a geração de empregos (de preferência, formais) e o aumento do salário mínimo, dentre um conjunto de outras ações
articuladas. Aliás, a retirada do Brasil do Mapa da Fome em 2014, é resultante
de uma operação bastante sofisticada, que envolveu: política de emprego e
renda, crédito à agricultura familiar (Pronaf), expansão da merenda escolar,
política de estoques de alimentos, política de controle da inflação, e assim
por diante. Tais políticas, que devem ser desenvolvidas de forma articulada,
necessariamente têm que ser conduzidas pelo Estado. O setor privado não tem
interesse e nem condições de assumir tal coordenação. O setor privado, no
máximo faz uma doação modesta e depois gasta um recurso equivalente ou maior do
que o da doação, para propagandear o acontecido.
Segundo o Banco Mundial, no
Brasil 9,3 milhões de pessoas ganham menos de US$ 1,90 por dia, ou seja, vivem em
extrema pobreza. Segundo o Banco, no Brasil cerca de mais de 5,4 milhões de
pessoas deverão passar para a extrema pobreza neste ano em razão da crise
econômica e da pandemia. Se a previsão
estiver correta, o total chegaria a quase 14,7 milhões até o fim de 2020, ou 7%
da população. Vale observar que os dados do IBGE sobre a fome se baseiam em
pesquisa de campo realizada em 2018, ou seja, a situação de hoje é muito pior
do que era. A situação econômica de lá para cá continuou se deteriorando, e a
pandemia, somada à incompetência do governo, não só continua matando muita
gente, mas também está agravando enormemente os indicadores de renda e pobreza.
A destruição de direitos e da limitada
democracia existente, e o aumento dos níveis de desigualdade, trazidos pelo
golpe de 2016, estão colocando o Brasil, e o subcontinente latino-americano, na
mesma situação da Europa no fim do século 19. Não é por acaso que Bolsonaro
está reforçando o orçamento militar e o das forças policiais auxiliares. Como
não investe em educação, saúde, e no combate à fome, tem que gastar em
armamentos para conter uma eventual reação da população.
Segundo ainda o Banco Mundial
há hoje em torno de 821 milhões em situação de insegurança alimentar no mundo,
mas há 135 milhões que realmente passam fome. É a insegurança alimentar
crônica. São pessoas que estão não só em situação de insegurança, mas não tem o
que comer. A previsão é a de que nos próximos anos, em torno de 130 milhões se
juntarão a esses 135 milhões, totalizando 265 milhões. Ou seja, vai dobrar o
número de pessoas com fome crônica no mundo.
Descrevendo a situação no outro
extremo da sociedade, a ONG Oxfam realizou uma análise para algumas das
empresas mais lucrativas do mundo com operações nos Estados Unidos, Europa,
Austrália, Índia, Nigéria e África do Sul (está no estudo “Poder, Lucros e
Pandemia”). A organização observou que 32 empresas devem faturar US$ 109
bilhões “a mais” no
exercício fiscal de 2020 do que na média dos quatro anos anteriores. Segundo a
Oxfam essas 32 empresas que estão lucrando com a pandemia devem distribuir 88%
dos seus lucros excedentes a acionistas que pertencem, predominantemente, a grupos
de alta renda.
Conforme conclui a ONG a atitude
de tirar proveito da crise para obter superlucros excedentes é um fenômeno que
acontece em todo o mundo. Por isso a riqueza dos 25 bilionários mais ricos do
mundo aumentou espantosos US$ 255 bilhões de meados de março ao final de maio
de 2020. Só nos Estados Unidos, o patrimônio líquido dos bilionários (muitos
dos quais são ricos investidores em grandes empresas) apresentou um aumento de
US$ 792 bilhões. Segundo a pesquisa esses grandes grupos econômicos são
alavancados por uma série de privilégios corporativos e acordos unilaterais com
governos. Enquanto os governos lamentam ter que socorrer trabalhadores que passam
fome, muitas vezes concedendo migalhas, abrem o orçamento público para o
interesse de grandes grupos econômicos. As empresas listadas na pesquisa da
Oxfam têm poder de monopólio em seus segmentos de atuação e capacidade para influenciar
qualquer governo do mundo. Fazem lobby, financiam campanhas dos candidatos a
presidente e ao parlamento, etc.
A mesma pesquisa da Oxfam
mostra que, apesar do aumento das taxas de desemprego em patamares inéditos, e
do fechamento de milhões de pequenas empresas em todo o mundo, os principais mercados
de ações parecem que estão se recuperando, de forma rápida. O valor de mercado
das 100 empresas cujas ações mais se valorizaram desde o início de 2020 no
mundo, aumentou em mais de US$ 3 trilhões. Um sistema econômico destes só tem
que entrar em colapso. A maior crise de empobrecimento e desemprego da história
e os mercados de ações de recuperando, como se a economia estivesse em céu de
brigadeiro. O fenômeno revela que o preço das ações se referencia muito mais em
movimentos especulativos do que em indicadores de crescimento da produção, do
emprego e da renda. Este ciclo de valorização das ações, completamente
descolado da economia produtiva, resolve o problema de curto prazo dos
capitalistas, mas agravará as contradições estruturais do sistema capitalista
no longo prazo. Quem viver, e sobreviver, verá.
*Economista
28.09.20
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