sexta-feira, 27 de março de 2020

As tragédias que ameaçam a população brasileira


                                                                                  *José Álvaro de Lima Cardoso
   
   A perspectiva de uma grande crise internacional, acelerada por uma brutal pandemia, está levando governos a optarem por ações drásticas em todo o mundo. Vai ficando claro que o risco da crise financeira se espalhar por todo o sistema capitalista é grande. Alguns analistas afirmam que o risco sistêmico é muito maior nesta crise, do que foi em 1979, 1987 ou 2008. O risco é muito alto de contaminação do mercado de derivativos, o que envolve trilhões de dólares, em montante superior à crise de 2007/2008. É uma verdadeira fábula de dinheiro aplicada em papeis sem lastro, investimentos financeiros completamente descolados da esfera real da economia.
     Há inúmeros sinais, emitidos pelos donos do capital no mundo todo, de que o risco da crise econômica se disseminar, somado agora ao coronavirus, é muito elevado. Os governos dos países imperialistas estão adotando medidas extremas, indicação de que as informações são ainda mais graves do que aquelas as quais temos acesso. Dessa forma:
 1. O Fed (banco central norte-americano) eliminou exigências de reservas bancárias nos bancos comerciais, o que significa uma disponibilização potencialmente ilimitada de crédito. No dia 13 de março os EUA declararam situação de emergência nacional devido ao rápido avanço da pandemia, o que disponibiliza para o combate ao coronavírus, cerca de 50 bilhões de dólares. Comparado aos valores investidos nos países europeus é pouco, mas é importante se considerarmos que Donald Trump foi um dos dirigentes que, há poucos dias, fez troça dos riscos da pandemia;
2) O governo alemão, que é uma espécie de “pátria da austeridade fiscal” anunciou no dia 13 de março empréstimos "ilimitados", que podem, segundo previsões, alcançar 550 bilhões de euros, para amparar as empresas em função da crise econômica e da pandemia. Este plano de ajuda às empresas na Alemanha é mais significativo do que o utilizado na crise financeira de 2008. A crise na Alemanha, país que é o motor da Europa, também é anterior ao coronavírus: o país cresceu meros 0,6% em 2019, uma notável e clara desaceleração em relação a 2017 (2,5%) e 2018 (1,5%). A exemplo de outras economias, a crise sanitária apenas piorou uma situação que já era ruim;
3) A Comissão Europeia propôs no dia 20.03 suspender as regras orçamentárias da União Européia, de forma a permitir aos seus países membros aumentar o gasto público, visando conter o prejuízo humano e econômico da crise. Foi ativada pela primeira vez uma cláusula de escape geral do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Com a decisão os 19 países da zona do euro, poderão injetar em suas economias “tudo que precisarem de recursos”. O PEC, agora suspenso, limita o déficit público a 3% e a dívida pública a 60% do PIB, sob pena de sanções econômicas. Com o acionamento da cláusula os países poderão ter déficit elevado e contrair dívida publica acima de 60% do PIB;
4) No mesmo dia 20.02, o governo britânico anunciou um novo pacote de estímulos para a economia do Reino Unido enfrentar a crise decorrente da doença. Serão mais 38 bilhões de libras (mais de R$ 223 bilhões). Estes recursos serão usados para garantir o pagamento de 80% dos salários dos trabalhadores do país pelo período de três meses, a partir de 1º. de março. Com este já são três os pacotes de medidas em menos de duas semanas, totalizando 418 bilhões de libras, ou R$ 2,5 trilhões. Estamos falando de um montante equivalente a 34% do PIB brasileiro para medidas de contenção às crises econômica e sanitária. Nunca em toda a história do Estado britânico foi dado um incentivo à economia dessa magnitude, o que nos dá uma ideia do tamanho do tsunami que está se armando no horizonte. As garantias dos salários, inicialmente são para três meses, entre março e maio. Mas, se a crise se aprofundar o prazo pode ser estendido. O governo britânico afirma que não há limites para o valor que pretende gastar.
    Na Inglaterra, além do pagamento de 80% dos salários, (o que significará o gasto de 8 bilhões de libras, quase R$ 47 bilhões), haverá também a suspensão do IVA (Imposto sobre o Valor Agregado). Esta renúncia ao imposto, para estimular o funcionamento do comércio, representará a perda de receitas na casa dos 30 bilhões de libras (mais de R$ 176 bilhões). É um valor equivalente a 1,5% PIB inglês. O pacote inclui ainda uma ajuda para locatários de imóveis, em 30% do valor do aluguel. Ademais, todos os negócios do ramo da hotelaria e restauração tiveram as taxas governamentais suspensas, para garantia de sua sobrevivência.
     Este pacote impressionante, que visa sustentar o funcionamento da economia britânica, veio acompanhado de restrições ainda mais duras da vida em sociedade, com o aumento do isolamento social. O governo do Reino Unido determinou que fossem fechados lojas, bares, restaurantes, pubs, teatros, cinemas e academias de ginástica. As aulas também foram suspensas. O governo sabe que obrigar tais negócios a fecharem, sem uma compensação econômica estatal, significaria a falência dos mesmos.  
     No Brasil não existe um plano nacional de enfrentamento da pandemia, as coisas vão sendo feitas empiricamente, à medida que os problemas vão surgindo. Alguns estados e municípios mais ativos estão se virando como podem. Mas na maioria dos entes federativos, e principalmente no governo federal, o enfrentamento do coronavírus se limita a mandar as pessoas se isolarem em casa. O problema é que essa crise sanitária pode durar dois, três, ou seis meses, e apenas uma parte minoritária da população, classe média e os ricos, conseguirão ficar em casa nesse período. Para começar, do ponto de vista técnico, o trabalho a partir de casa, é privilégio de apenas uma parte da classe trabalhadora. Para a parcela majoritária dos trabalhadores, suas funções não podem ser feitas a partir de casa, exigem a presença física.  
     Além disso, apenas os ricos, e um segmento da classe média - que dispõe de reservas - conseguirá se isolar em suas casas enquanto tiverem recebendo salários. Muitas empresas, se nada for feito, irão quebrar. A esmagadora maioria das empresas no Brasil são micro, pequenas e médias. Quantas delas dispõe de gordura para ficar um, dois ou três meses sem funcionar? Sem ajuda estatal, como na Europa, bares, padarias, pequenos negócios em geral, não dispõem de recursos para ficar sem faturar, nem por alguns dias.  
     O governo federal insiste em mandar as pessoas para casa porque não custa dinheiro, é uma solução barata. O dinheiro público, na verdade está sendo disponibilizado para as empresas. Por exemplo, o governo confirmou que distribuirá cupons a pessoas sem assistência social e à população que desistiu de procurar emprego, no valor médio de R$ 191. O valor será pago por três meses, totalizando uma despesa de R$ 15 bilhões. No mesmo dia que anunciou este benefício, divulgou também que passará a comprar títulos soberanos do Brasil denominados em dólar (global bonds) das instituições financeiras nacionais, dos bancos. O estoque desses títulos é de US$ 31 bilhões (R$ 161 bilhões). Ou seja, para a população pobre (que receberá um valor entre R$ 89 a R$ 205, desde que a pessoa não receba nenhum benefício outro social).
     Nessa mesma linha, no domingo, 22, o governo publicou uma MP (Medida Provisória) que autoriza suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses. Neste período o empregado deixa de trabalhar, mas a empresa não pagará salários. A empresa deverá nesse período oferecer cursos de qualificação online aos seus trabalhadores (uma balela total) e manter benefícios. Essa é uma medida para não gastar dinheiro público com trabalhadores, e que certamente não irá funcionar. Mesmo que as empresas ministrassem os cursos online, o problema neste momento não é esse, e sim como os trabalhadores irão sustentar suas famílias. A MP publicada ontem, na realidade, irá flexibilizar ainda mais a legislação, visando facilitar a demissão de trabalhadores por parte das empresas. Um dos aspectos da MP, inclusive, é que a negociação individual se sobrepõe aos acordos coletivos e legislação trabalhista, tirando assim completamente os sindicatos da situação.    
     Estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV EESP) prevê que o Brasil termine 2020 com uma retração de 4,4% no PIB. Se confirmada, seria o maior recuo do PIB desde 1962, quando iniciou a série histórica disponível no Banco Central. O cenário simulado pela FGV EESP prevê efeitos da mesma gravidade dos verificados na crise de 2008, dada a queda da atividade global, especialmente nas economias chinesa, europeia e norte-americana. O fato é que, dependendo do tempo que durar a pandemia, a projeção da FGV pode se tornar muito conservadora. Para o crescimento, este ano já está comprometido e dependendo do que for encaminhado, a crise se arrastará nos próximos anos.
     A pandemia segundo a OIT, na previsão mais moderada poderá aumentar em 5,3 milhões o número de desempregados no mundo. No pior cenário, é possível que o número de desempregados cresça em 24,7 milhões, num universo, segundo a Organização, de 188 milhões de desempregados em 2019. Conforme previsão da OIT aumentará também o subemprego, com as inevitáveis reduções das jornadas de trabalho e dos salários. A Organização divulgou um cálculo da perda de renda pelos trabalhadores, com a crise, que deve ficar entre US$ 860 bilhões e US$ 3,4 trilhões até o fim deste ano.
     No Brasil, antes da pandemia, a crise do emprego já era dramática. O país tem 12,6 milhões de pessoas desocupadas e a população subutilizada na força de trabalho (trabalhadores desocupados e subocupados por insuficiência de horas trabalhadas) atingiu o maior número da série histórica da PNAD, 27,6 milhões de pessoas em 2019. Segundo o IBGE, o número de subocupados, ou seja, os desocupados e os que não conseguem trabalhar um mínimo de horas semanais, está quase 80% acima do indicador verificado em 2014, ocasião em que foi registrado o menor número da série histórica (15,4 milhões). Neste quadro de explosão do desemprego e da informalidade a saída poderia ser o mercado externo, como já ocorreu em outras crises brasileiras. Mas as crises econômica e sanitária, são mundiais, os mercados em regra irão se fechar ainda mais.  
     A tragédia da classe média que irá perder o emprego a partir da quebradeira de empresas, vai acabar sendo um problema menor em relação a um número enorme de pessoas no Brasil que, sem pandemia e sem crise econômica, já estavam numa situação de extrema dificuldade. Por exemplo, os idosos pobres, que vivem de uma aposentadoria ou renda do Bolsa Família, como irão se recolher, se não têm condições de se isolar em casa e nem dispor de alimentação adequada. O Brasil tem cerca de 40 milhões de trabalhadores informais, cujo rendimento é “da mão para a boca“, ou seja, não dispõem de nenhuma espécie de fundo de reserva ou capacidade de poupança para momentos de desemprego.
     O Brasil tem um cadastro único da população pobre, no qual consta 80 milhões (segundo informação da ex-ministra Tereza Campelo é o único país do mundo que tem um cadastro como esse). A ex-ministra adverte que a orientação para esse pessoal se isolar em casa é impossível de ser seguida. Esse pessoal não tem condições de isolamento, alimentação, renda, emprego, estabilidade. Ela alerta que quando doença atingir as comunidades pobres poderá haver um verdadeiro genocídio no Brasil. Na China, que diferentemente do Brasil, colocou o poder do Estado no controle da doença, o vírus foi quatro vezes mais fatal nas áreas pobres do país, do que nas ricas ou nas de classes médias. Este dado indica o que poderá ser no Brasil, governado pela extrema direita, os efeitos da doença.
     Como os trabalhadores informais, autônomos, estimados em 40 ou 50 milhões no Brasil (ironicamente chamados de “empreendedores”) vão ficar em casa um, dois ou três meses, se não têm reservas de qualquer tipo, e nem direitos sociais, que lhes garantam a sobrevivência? Uma parte dos trabalhadores de carteira assinada, que têm FGTS, poderá se defender da fome por alguns meses, até o pior da crise passar (uma parte, apenas). Mas e os milhões de trabalhadores informais, como irão fazer?
     Calcula-se que existe mais meio milhão de brasileiros que estão em situação de extrema pobreza, quase completamente desassistidos pelo governo antipopular e antinacional de Bolsonaro. Recentemente o governo congelou o Bolsa Família em 200 municípios pobres e a estimativa é que a fila já esteja em mais de 1 milhão de pessoas. As pessoas que estão na fila já tiveram seus dados checados, não têm nenhum problema técnico ou de qualquer outra ordem. São pessoas miseráveis, com filhos, que têm direito a ingressar no Programa. Elas não entram porque o governo não quer gastar com pobres. É de uma crueldade inominável.
     Um aspecto visível dessa situação são as centenas, milhares de moradores de rua, idoso, crianças, que aumentaram exponencialmente nos últimos anos em todos os aglomerados urbanos. Os moradores de rua são um dos segmentos mais vulneráveis à pandemia. Dormem em locais insalubres, se alimentam mal, não tem acesso à remédios, não conseguem nem mesmo manter hábitos simples de higiene. Até para simples ato de lavar as mãos, fica difícil. Quando o emprego estava crescendo, até 2014, e as políticas públicas de atendimento à pobreza estavam em franco funcionamento, tínhamos parado de ver esse tipo de população miserável nas ruas. De alguns anos para cá, principalmente a partir do golpe em 2016, essa tendência se inverteu.
     Mas a flagrante expansão do número de moradores de rua é só a ponta do iceberg, é o sofrimento mais visível. O problema é muito mais profundo: são milhões de pessoas desempregadas, subempregadas, passando fome (esta retornou com velocidade), fila de trabalhadores rurais na previdência, fila para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinados à pessoas com deficiência. Todo esse descaso com a questão pública, numa conjuntura que combina duas crises simultâneas (econômica e sanitária), conduz os mais pobres a uma situação verdadeiramente desesperadora. A crise econômica, e a crise sanitária são flagelos menos graves do que o Risco Bolsoguedes.
                                                                                                            
                                                                                                                                  *Economista
                                                                                                                                     23.03.20

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