*José Álvaro de Lima Cardoso
O impacto para a economia global, decorrente
da pandemia, está sendo muito mais profundo e imediato do que o verificado na
crise de 2008 e na Grande Depressão de 1929. O economista Noriel Roubini - cujas
análises que antes eram consideradas pessimistas, são agora vistas como
realistas - registra que que naquelas duas grandes crises as bolsas de valores
caíram em 50% ou mais, os mercados de crédito congelaram, as grandes falências
se seguiram, as taxas de desemprego subiram acima de 10% e o PIB contraiu a uma
taxa anualizada de 10% ou mais. Mas todos esses fenômenos aconteceram em três
anos, ou mais. Na atual crise, registra Roubini, tudo isso se materializou em
três semanas, sendo que os elementos da chamada demanda agregada (consumo,
gasto de capital, exportações) se encontram em queda livre, como nunca observado
antes (ver artigo de Roubini, “Uma depressão maior”, no GGN, 24.03.20).
Se a
demanda agregada cai sem precedentes na história econômica, é de se esperar que
o impacto desse processo sobre o crescimento será brutal. Mesmo que o efeito da
pandemia fosse resolvido hoje em todo o mundo, a recessão é quase inevitável e
é grande o risco de uma depressão global. Há previsões de que no segundo
trimestre a economia norte-americana encolha 30%. As previsões mais otimistas
preveem contração de pelo menos 14% no PIB (é o caso do banco JP Morgan).
A
ideia de que os efeitos da pandemia são “democráticos”, ou seja, de que o vírus
afetaria a todos de forma equânime, é mitológica. As condições de alimentação,
moradia, acesso à remédios, higiene, tudo isso fornece aos ricos e à classe
média condições infinitamente superiores para o enfrentamento da doença, em
relação aos pobres. Quanto menos dinheiro a pessoa tiver, mais sujeito estará a
contrair a doença e menos condições terá de se curar. Dessa forma os efeitos da
crise econômica, impulsionada agora pela pandemia, sobre a pobreza, poderão ser
devastadores. Segundo a OIT é possível que o número de desempregados cresça em
24,7 milhões, num universo de 188 milhões de desempregados em 2019. Conforme
previsão da OIT aumentará também o subemprego, com as inevitáveis reduções das
jornadas de trabalho e dos salários. A Organização divulgou um cálculo da perda
de renda pelos trabalhadores, com a crise, que deve ficar entre US$ 860 bilhões
e US$ 3,4 trilhões até o fim deste ano.
Uma crise que se apresenta como um tsunami
monstruoso, e que deverá ser mais grave do que a Grande Depressão, requer
políticas extremas e inusitadas. Alguns países parecem que estão compreendendo
a gravidade da crise e começaram a desenvolver políticas de proteção ao emprego
e à renda, e mesmo de transferências de dinheiro aos cidadãos. A vizinha Argentina,
que atravessa uma grave crise, e recentemente teve que recorrer ao FMI, definiu
quarentena geral da população. Além disso para as famílias que ficaram sem
renda, anunciou uma ajuda de 10 mil pesos (cerca de R$ 800). Em princípio, a
ajuda será uma única vez no mês de abril, porém sujeito a se estender, caso a
determinação de isolamento total da população permaneça. O governo avalia que
3,6 milhões de famílias serão contempladas com o benefício.
No Brasil, antes da pandemia, a crise do
emprego já era dramática. O país tem 12,6 milhões de pessoas desocupadas e a
população subutilizada na força de trabalho (trabalhadores desocupados e
subocupados por insuficiência de horas trabalhadas) atingiu o maior número da
série histórica da PNAD, 27,6 milhões de pessoas em 2019. O país tem cerca de 40 milhões (pelo
menos) de trabalhadores informais, cujo rendimento é “da mão para a boca“, ou
seja, não dispõem de nenhuma espécie de fundo de reserva ou capacidade de
poupança para momentos de desemprego. A orientação para esse pessoal se isolar em
casa é muito difícil de ser seguida por muito tempo, já que não existem condições
de isolamento, alimentação adequada, renda e emprego para tal.
Alguns estudiosos do fenômeno da pobreza estão prevendo que quando a doença
atingir as comunidades pobres poderá haver um verdadeiro genocídio no país. Na
China, que diferentemente do Brasil, colocou com sucesso, o poder do Estado no
controle da doença, o vírus foi quatro vezes mais fatal nas áreas pobres do
país, do que nas ricas ou nas de classes médias. Este dado projeta o que poderá
ser no Brasil, com um governo anti povo, os efeitos da doença.
A experiência mundial no
enfrentamento da pandemia varia em cada país, e mesmo dentro de um mesmo país.
Mas os casos mais bem sucedidos de combate à doença parece passar pelos
seguintes encaminhamentos: a) isolamento rápido da esmagadora maioria da
população; b) colocação do sistema público de saúde à serviço do combate à
pandemia; c) ataque inteligente e concentrado nas áreas críticas; d) realização
de um grande número de testes da doença; e) planejamento bem coordenado centralmente,
com amplo monitoramento da evolução da doença.
No
Brasil, que completou um mês ontem desde o primeiro caso de contaminação pelo
Covid-19 (26.02), não existe um programa nacional de combate à pandemia. Os estados
e municípios estão encaminhando seus planos, que em boa parte se resumem a
indicar o isolamento das pessoas e a medidas para manter apenas o essencial
funcionando na economia. Mas não existe um plano federal, que integre
nacionalmente os planos estaduais. O governo federal não tem consenso nem em
relação ao isolamento da população, que seria a primeira das ações. Os órgãos
do executivo, a começa pelo presidente, emitem o tempo todo informações contraditórias
entre si. O que ainda salva a situação é que alguns entes federativos, estados
e municípios, estão desenvolvendo planos próprios com alguma eficácia.
A questão é que se a pandemia se alongar no tempo, como parece que vai, a
política de isolamento, pura e simplesmente, para uma boa parte da população,
irá se esgotar. A maioria das famílias não dispõe de recursos para se sustentar
sem trabalhar. O trabalho a partir de casa ainda é privilégio de poucos. São 40
ou 50 milhões de autônomos, os trabalhadores informais (“empreendedores” de si
mesmo), que não dispõem de reservas para ficar 30, 60, ou 90 dias em casa. Não
têm nem dinheiro e nem direitos sociais que lhes garantam a sobrevivência no
período de isolamento. Calcula-se que existe mais de meio milhão de brasileiros
que estão em situação de extrema pobreza, quase completamente desassistidos. O Brasil tem milhares de moradores de
rua, idosos, crianças, que aumentaram exponencialmente nos últimos anos em
todos os aglomerados urbanos. Os moradores de rua são um dos segmentos mais
vulneráveis à pandemia: dormem em locais insalubres, se alimentam mal, não tem
acesso à remédios, não conseguem nem mesmo manter hábitos simples de higiene.
Até para o simples ato de lavar as mãos fica difícil, muitas vezes usam poças
de água.
No dia 26 de março a Câmara de Deputados aprovou projeto que prevê
pagamento de um auxílio emergencial aos mais pobres (PL 9236/17), no valor de R$
600 mensais. O auxílio será concedido durante três meses para as pessoas de
baixa renda afetadas pela crise sanitária. Para ter acesso ao benefício a
pessoa deve ao mesmo tempo: ser maior de 18 anos de idade; não ter emprego
formal; não receber benefício previdenciário ou assistencial, seguro-desemprego
ou de outro programa de transferência de renda federal que não seja
o Bolsa Família; ter renda familiar mensal por pessoa de até meio salário
mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal total (tudo o que a família recebe)
de até três salários mínimos (R$ 3.135,00). Os deputados estimam que cerca de
100 milhões de brasileiros serão atingidos. Claro, esse é um cálculo, uma
teoria. A operação disso, por parte de um governo que é contra esse tipo de
medida pode ser boicotada na prática.
A “timidez” do projeto aprovado na Câmara Federal (falta aprovação no
Senado e a sanção do executivo) revela, na melhor das hipóteses, um
desconhecimento por parte da maioria dos parlamentares, da gravidade das crises
somadas. É didático prestar atenção no plano aprovado na madrugada do dia 25.03
no Congresso dos Estados Unidos, que aponta a magnitude da crise que os
norte-americanos estão vislumbrando. Trata-se do mais importante plano
econômico da história da economia mundial. A previsão é de um gasto de quase
dois trilhões de dólares, equivalente a cerca de R$ 10 trilhões (para efeito de
comparação, o PIB brasileiro no ano passado foi de R$ 7,3 trilhões). Essa
fábula de dinheiro, um antídoto contra a crise econômica e a pandemia, prevê injeções
maciças nas empresas e bolsos dos cidadãos. Os EUA, cujo acesso à saúde é
privilégios de poucos, já se tornou o epicentro da epidemia no mundo, com mais
de 85.000 contagiados (superou a China) e mais de 1.300 mortos (isso até hoje
pela manhã, mas a curva de contaminação empinou). Isso revela o ridículo da
posição de Trump, que ironizou no início os avisos acerca da gravidade da
doença.
A estratégia como um todo dos EUA implica num investimento de seis
trilhões de dólares, se somarmos este pacote aos outros quatro trilhões em
capacidade de empréstimo colocada por parte do Federal Reserve (banco central).
Os repasses diretos de dinheiro, que alcançarão a maior parte dos cidadãos
norte-americanos, será de 1.200 dólares por pessoa adulta e 500 dólares por
cada menor de idade. Essa ajuda direta aos cidadãos poderá alcançar 500 bilhões
de dólares. O plano prevê também uma linha de crédito de 367 bilhões de dólares
para pequenas e médias empresas, e um fundo de 500 bilhões para indústrias,
cidades e estados. Os trabalhadores demitidos receberão o seguro-desemprego durante
quatro meses, no valor habitualmente pago em seu Estado, mais um dinheiro extra
de 600 dólares.
Para enfrentar o tsunami que está se armando, o Brasil precisaria adotar
medidas muito mais corajosas do que a tomada na Câmara Federal ontem. Seria o
momento de atender os trabalhadores de baixa renda com um valor decente de
sustentação de suas famílias. Seria a hora de amparar o pessoal pobre, que
recebe o Bolsa Família, a grande massa de trabalhadores informais, os micros empresários.
O Brasil tem condições técnicas e financeiras para realizar ações dessa
envergadura. Possui por exemplo, o cadastro único da população pobre, com 80
milhões de pessoas, que será inclusive utilizado agora para implementar o
projeto da Câmara Federal, caso seja ele aprovado nas demais instâncias. Tem o
SUS, que os golpistas ainda não desmontaram completamente, apesar das
tentativas.
O país teria a alternativa de usar as reservas internacionais, que deve
estar na casa dos 346 bilhões de dólares (que agora estão sendo queimadas por
Guedes para segurar o valor do dólar. Só em março, entre os dias 10 e 20 foram
gastos 20 bilhões). Teria condições também de aumentar o patamar da dívida
pública, como estão fazendo governos do mundo todo. Mas não se trata de decisão
técnica. É que a linha de intervenção de Bolsonaro e Guedes é gastar o mínimo
com a população pobre e destinar o máximo de dinheiro público para grandes capitalistas
e banqueiros. Essa opção deve não apenas comprometer o enfrentamento presente
da crise, mas também os próximos 10 anos do Brasil.
*Economista
27.03.20
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