*José Álvaro de Lima Cardoso
O estado
do Amapá está desde 03 de novembro sem o fornecimento regular de energia
elétrica, em função de um apagão generalizado. São 19 dias desde o incêndio em
uma subestação da Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), em que foram
danificados 2 de 3 transformadores responsáveis pela distribuição da energia
elétrica em 13 das 16 cidades do estado, atingindo mais de 730 mil pessoas. Dos
três transformadores existentes no estado um já estava estragado há quase um
ano. Somente agora, depois da tragédia, é que a empresa privada responsável
(LMTE) está providenciando o seu conserto.
A população
do Amapá passa por um completo abandono do Estado. Está faltando energia, água
e combustível. As famílias perdem alimentos em decorrência da falta de
refrigeração e todos os serviços de que dependem de eletricidade foram interrompidos.
A LMTE pertence majoritariamente ao grupo Gemini Energy, que é
controlado por um fundo de investimentos chamado Starboard Asset. A
Gemini Energy possui 85,04% do controle da Linhas de Macapá Transmissora de
Energia, enquanto a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia),
uma autarquia vinculada ao Ministério da Integração Nacional, é responsável por
14,96%.
Desde o
início do apagão, foram registradas mais
de 80 manifestações de moradores de bairros e cidades por todo o
estado. Desde que restabelecido parte do sistema o funcionamento é muito
precário (houve inclusive novo apagão em 17 de novembro). A interrupção de
energia várias vezes ao dia, provoca inúmeros problemas, como danificação dos
equipamentos elétrico-eletrônicos, em decorrência da irregularidade da transmissão
da energia.
Longe de
ser uma “fatalidade” esses apagões são consequência do processo de privatização
do fornecimento de energia no Amapá, ocorrido em 2008. Segundo os relatórios da
fiscalização pública do Amapá, onde atua, a LMTE apresenta problemas. No Pará, estado
onde opera a Subestação Oriximiná, em município de mesmo nome, a empresa tomou multa
de R$ 460 mil em outubro do ano passado por falta de manutenção e uso
inadequado dos equipamentos. Como a Gemini Energy, empresa estrangeira que atua
nos 13 municípios amapaenses atingidos pelo problema, e que controla a LMTE, não
conseguiu resolver o apagão, a Eletrobras foi chamada para socorrer o estado. A Eletrobrás acionou sua
subsidiária, a Eletronorte, que contratou unidades termoelétricas para
reabastecer o estado. Foi essa ação que permitiu que, até o momento, o serviço
seja fornecido, pelo menos parcialmente.
Não é
novidade que a Eletrobras está na alça de mira dos golpistas, para ser
privatizada. Ela começou a ser fatiada e entregue já durante o governo golpista
de Temer (2016-2018). Atualmente um projeto de lei para sua privatização está
parado no Congresso em função da pandemia e da resistência dos parlamentares do
estado e da região. Tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado é grande a
resistência dos políticos em permitir a privatização da Eletrobrás. O
acontecido no Amapá certamente irá atrapalhar os planos de Paulo Guedes, de
entregar a Eletrobrás na bacia das almas. O que está acontecendo no Amapá é um
exemplo didático do significado da privatização do setor. É um exemplo prático
recente do que tem sido a privatização historicamente no Brasil: descaso com a
população, falta de investimentos e manutenção, e piora nos serviços.
A privatização do setor elétrico no Brasil sempre rimou com
apagão. No início dos anos 2000, no Governo Fernando Henrique Cardoso, que
patrocinou a chamada “privataria tucana”, o país sofreu um problema imenso de
apagão de energia por falta de investimentos. As empresas que compraram os
ativos não investiram, e as empresas públicas foram proibidas de investir. A
maioria das pessoas não sabe, mas o setor elétrico brasileiro já é
majoritariamente privado. A grande maioria das distribuidoras de energia
elétrica no Brasil já é privada. Entre mais de 50 distribuidoras, somente seis
são estatais. No sistema de geração de energia, 61% já é privado, na transmissão
cerca de 40% também é privado.
O
processo de privatizações no Brasil que começou no governo Collor, e que foi muito
aprofundado no governo FHC, trouxe uma série de problemas. O país perdeu em
parte sua segurança energética, passando a depender crescentemente do setor privado,
eventualmente de empresas privadas estrangeiras (como no caso do Amapá). Além
de tudo, as empresas privadas não investem, as grandes obras no setor foram
sempre realizadas pelo Estado. O apagão do governo FHC decorreu da ausência de
investimentos. O Brasil é um país subdesenvolvido que precisa aumentar significativamente
o uso de energia elétrica, comparativamente aos países desenvolvidos. Portanto
precisa investir ainda muito no potencial hidroelétrico existente no país.
Uma
empresa privada, isolada, para ganhar a concorrência de exploração da região,
muitas vezes tem que fazer proposta financeira irrealista para levar a
concessão. Ganha a concorrência, mas não consegue suprir o atendimento com
qualidade, não faz manutenção para economizar e garantir margens de lucros.
Além disso, super explora os trabalhadores com equipes mínimas e salários
miseráveis. Mantém, além disso, equipamento velhos e estragados como constatado
agora no caso do Amapá.
Diferentemente de uma empresa como a Eletronorte (estatal que foi
chamada para resolver o problema), uma empresa privada, dependendo do porte, tem
dificuldades de manter equipes maiores, e sustentar equipamentos caríssimos. O
transformador que estava “encostado” há um ano no Amapá, da LMTE, pesa 200
toneladas e precisou agora ser desmontado e transportado até Santa Catarina,
para ser consertado. Isso tudo exige um ganho de escala, que não é fácil para
uma empresa média privada, manter.
Energia
elétrica não é um produto qualquer. Um dos fundamentos da sustentabilidade
econômica de um país é a sua capacidade de prover logística e energia para o
desenvolvimento de sua produção, com segurança e em condições competitivas e
ambientalmente sustentáveis. Sem energia, não existe nação. Não é por caso que os golpes de Estado na
América Latina têm sido perpetrados também para apropriação das fontes de
matérias-primas, como no Brasil (petróleo) e mais recentemente, Bolívia, cuja
motivação central (do aspecto de matérias-primas) foram as imensas reservas de
Lítio.
Uma usina
hidrelétrica jamais deveria ser privada porque, como defendem os estudiosos no
assunto, ela possui a “chave das águas”. Em época de seca armazena água para
transformar em energia. Mas, ao mesmo tempo, cada litro utilizado para a produção
de energia, atrapalha o abastecimento e a produção de alimentos. Há toda uma
relação com esse tipo de produção energética e as reservas de água do país,
tema que certamente se encontra na galeria dos problemas “mega estratégicos” de
qualquer país.
A energia
elétrica é tão importante, que alguns países centrais a tratam como um assunto
de segurança nacional. Nos EUA o Corpo de Engenheiros do Exército é o maior
operador de energia elétrica do país, controlando as grandes barragens de John
Day, The Dalles e Bonneville. Na China, a estatal Three Gorges Corporation
controla a maior hidrelétrica do mundo, a Três Gargantas. No Canadá, o setor é
controlado por companhias dos governos provinciais, semelhantes aos governos
estaduais brasileiros.
No Brasil
a Eletrobras tem 47 usinas hidrelétricas responsáveis por 52% de toda a água
armazenada no Brasil, sendo que 70% dessa água são utilizados para a irrigação
da agricultura. Imagine tudo isso nas mãos de uma empresa privada que só
se interessa pelo lucro, como a que acabou de deixar o Amapá às escuras. O
caso do Amapá teria que servir para a população brasileira entender a imensa
cilada que significa a privatização do setor elétrico no Brasil.
Economista
22.11.20.
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