terça-feira, 8 de setembro de 2020

Apesar das circunstâncias, não se deve ter medo de nada (ou Os sindicatos do lado certo da história).

 

                        *José Álvaro de Lima Cardoso

      Mesmo com o evidente avanço da extrema direita fascista no Brasil, com destruição de direitos e da democracia, o governo não conseguiu dar uma estabilidade política e econômica ao país. A instabilidade e a polarização estão relacionadas diretamente com o fato de que não conseguiram apontar uma mínima saída para a crise econômica. O seu programa de governo inclusive, ao destruir direitos e entregar patrimônio nacional, claramente tende a piorar a situação de conjunto, no médio prazo. Como há uma crise internacional muito profunda, o sistema financeiro mundial (que comanda verdadeiramente o processo no Brasil), quer mais e precisa extrair mais.

     A grande mídia, e os setores conservadores em geral, queixam-se, inclusive, do fato de que as privatizações não estão caminhando. Ou seja, toda a destruição de direitos, o enfraquecimento dos sindicatos, a entrega de patrimônio, o desmonte da Petrobrás, tudo isso não significa uma saída que satisfaça os setores que financiaram e deram o golpe no Brasil. Eles querem, por exemplo, desarticular o setor público, como vimos pelo projeto de reforma administrativa, que liquida com direitos históricos dos servidores, e tende no médio prazo a desmantelar o Estado.

     Na outra ponta da corda a população come o pão que o diabo amassou. Além dos quase 13 milhões de desempregados, 28 milhões gostariam de trabalhar, mas foram considerados fora da força de trabalho na última semana de julho, por não terem buscando ativamente uma ocupação. Ou seja, numa população ocupada de 81 milhões, no final de julho o país tinha mais de 40 milhões de desempregados e aqueles que gostariam de trabalhar, mas não buscaram ocupação por alguma razão. Isso, em meio à uma pandemia que já matou quase 130.000 pessoas no país, boa parte delas por incompetência e descaso governamentais. Neste quadro, é impossível haver estabilidade política no país.

     Essa dramática piora recente dos indicadores conjunturais se soma à uma situação estruturalmente muito aguda. No Brasil, os 50% mais pobres em termos de renda têm apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50% do total. No que se refere à propriedade, os 50% mais pobres detém 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos detém entre 70% a 80% de tudo. Conforme apontou o economista francês Piketty, em entrevista recente para a imprensa brasileira, são níveis de desigualdade semelhantes aos da Europa no fim do século 19 ou começo do século 20.

     É neste quadro de profunda crise política e econômica que se desenrolam as negociações coletivas entre sindicatos de trabalhadores e patronais. As negociações coletivas, que são uma das tarefas mais importantes dos sindicatos e que nunca foram fáceis, ficaram ainda mais adversas neste cenário de verdadeira tempestade completa. Uma das consequências de toda essa situação é a não reposição das perdas salariais, que para a maioria das mesas de negociação no Brasil é a cláusula mais importante. Como as negociações no Brasil, para o grosso das negociações, são muito limitadas, o reajuste salarial é fundamental. Mas, segundo pesquisa do DIEESE relativa ao primeiro semestre de 2020, houve redução do número de cláusulas relativas a reajustes salariais em 28% na comparação com o negociado no mesmo período de 2019 (conforme registrado no Sistema Mediador)

      A queda no número de registros ocorreu em todas as datas-bases do primeiro semestre, mas especialmente em abril (41%) e maio (39%), período em que o isolamento social foi maior. Como não houve redução no número de registros de instrumentos coletivos no período, tudo indica que a queda no número de reajustes está relacionada à mudança do objeto das negociações coletivas, que passaram a focar questões relativas à pandemia da Covid-19.

      Além de quase 30% dos instrumentos de negociação no primeiro semestre, nem ao menos preverem reposição da inflação no período, uma parcela significa ou praticou reajuste inferior à inflação, ou adiou o reajuste para o período pós pandemia. Em muitos casos há a cláusula de reajuste, só que definindo o mesmo para meses à frente da data-base, impondo uma perda dos salários reais. Por exemplo, houve negociações que aplicaram o INPC do período, mas para começar a vigorar bem mais à frente, em muitos casos em janeiro de 2021.

     A não reposição da inflação nos salários, ou o adiamento da reposição para meses após a data-base, provocou, claro uma significativa queda dos salários reais, que já são bastante irrisórios. O fato é especialmente grave para os salários mais baixos, já que, apesar da inflação em geral estar em torno de 3%, os alimentos têm aumentado de preço em ritmo bem superior. Segundo o DIEESE, a cesta básica de alimentos em São Paulo, que custou R$ 539,95, em agosto, aumentou 12,15% nos últimos 12 meses. Em Recife, os alimentos básicos aumentaram 21,44% em 12 meses. Ou seja, os patrões estão aproveitando a pandemia, e a natural desarticulação do movimento sindical, para na mesa de negociações, não dar reajuste salarial ou retirar os poucos avanços que os acordos e convenções coletivas, têm.

      O aumento das dificuldades na negociação se verificam num contexto em que as dificuldades da ação sindical, de conjunto, aumentaram muito. De 2012 a 2019 os sindicatos perderam 3,8 milhões de filiados no Brasil, segundo dados da Pnad Contínua/IBGE. Em 2019, das 94,6 milhões de pessoas ocupadas no país, 11,2% estavam associados a sindicatos. Em 2012 esse percentual era 16,1%. Além disso, há uma sistemática desqualificação dos sindicatos feita através da mídia comercial, empresas, instituições em geral, o que torna muito difícil os trabalhadores enxergarem a importância que exerce o sindicato nas suas vidas. É complicado o trabalhador comum entender que a existência do salário mínimo é uma conquista fundamental, numa sociedade na qual quase 60% da população vive com renda domiciliar per capita igual ou inferior ao valor do salário mínimo, e 43,1 milhões de pessoas, 20,6% da população, vivem em uma situação de insegurança alimentar.

     É nesse contexto extremamente desfavorável em que estão ocorrendo as negociações coletivas deste ano. Os patrões estão aproveitando toda essa conjuntura de crise econômica e sanitária para tentar “depenar” os direitos dos trabalhadores, muitos conquistados a suor e lágrimas, às vezes obtidos em muitas décadas. Assim, vale lembrar a observação da direção sindical do DIEESE em Santa Catarina, em documento recente, que trata da postura dos sindicatos na negociação coletiva:

     “Apesar da situação ser uma das mais críticas da história, não iremos nos desesperar. Apesar das circunstâncias serem extremamente temerárias também não devemos ter medo de nada. Afinal de contas, estamos defendendo os interesses da esmagadora maioria da população, e nos encontramos do lado certo da história” (11.08.20).

 

                                                                                               *Economista, 07.09.20

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