quinta-feira, 14 de maio de 2020

Sobre o golpe sabemos apenas o mais visível

                                                                         
  *José Álvaro de Lima Cardoso                      

      Ontem, 12 de maio, completou exatamente quatro anos do golpe de Estado no Brasil. Neste dia, no ano de 2016, o Senado autorizava a abertura do processo de impeachment da presidenta da República Dilma Rousseff, e determinou o seu afastamento pelo período de até 180 dias para decisão do Congresso sobre o assunto. Passados quatro anos, estamos em meio à uma crise econômica muito violenta, e no sexto ano seguido de recessão ou estagnação econômica. Sob o pretexto de “resolver” o problema econômico, o golpe de 2016 piorou muito uma crise que segue sem perspectiva de solução. Como desgraça pouca é bobagem, estamos em meio a uma pandemia, da qual o Brasil vai rapidamente assumindo o epicentro.
      Toda essa conjunção de desgraças acontece no momento em que o Brasil tem o pior governo da história: o mais entreguista; o mais subserviente aos EUA, que quer destruir a viabilidade do país enquanto nação. O governo Bolsonaro é, essencialmente, resultado direto do golpe de 2016. Imperfeito, porque Bolsonaro não era o candidato original dos golpistas, mas resultado direto do processo. Esse cidadão não teria se alojado no poder sem o golpe de 2016 e sem a fraude eleitoral de 2018. É necessário saber: os milhares de mortos pelo Covid-19 (número que ontem chegou a 12.400) são fruto direto e inapelável do golpe, que, dentre centenas de problemas, impôs a Emenda Constitucional 95 (“Emenda da Morte”, que congelou gastos com saúde e educação por 20 anos), e colocou Bolsonaro no poder.
     Em 2012, os indícios de que algo estava mudando na América Latina eram muito fortes. Nessa data já havia ocorrido os golpes de Honduras (2009) e do Paraguai (2012), nos moldes do que eles aplicariam no Brasil em 2016. O imperialismo norte-americano estava emitindo claros sinais de que não iria mais tolerar nenhum governo progressista na região.  Há uma luta encarniçada dos EUA para manter sua hegemonia em nível mundial, que está ameaçada, principalmente pela China. Os EUA consideram a América Latina o seu “quintal”. Este foi tomado por governos progressistas na primeira década dos anos 2000: Venezuela, Equador, Argentina, Honduras, Brasil, Uruguai, etc. Todos eleitos pelo voto direto.
    Dá trabalho, mas ser um país hegemônico no mundo traz também muitas vantagens. Uma delas é poder se apropriar de uma parte maior do produto mundial, para uso de sua população, mas especialmente das suas classes dominantes. A perda dessa condição implica em grandes riscos, inclusive de revoltas internas importantes. Vamos recordar que o modelo de desenvolvimento dos EUA, mesmo se apropriando de riqueza no mundo todo, resulta numa desigualdade social interna brutal. Já imaginaram o significado político e econômico de uma sublevação da classe trabalhadora dentro dos EUA? Por razões de manutenção da sua hegemonia, portanto, os EUA promoveram golpes em toda a América Latina, usando estratégias semelhantes, mas adaptadas às distintas realidades. Não nos enganemos: fez isso com o apoio de todos os demais países imperialistas, que formam uma espécie de “clube”.     
     Há sete anos atrás, em 2014, o Brasil discutia temas como: o que fazer com os bilhões de dólares que representava a descoberta do pré-sal, o Programa Minha Casa Minha Vida, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o cumprimento das Metas do Milênio da Onu, a saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, a redução da pobreza no país. O país discutia a possibilidade de disputar uma vaga no Conselho de Segurança da ONU, se debatia o programa Ciências sem Fronteiras, se polemizava se o país vivia ou não uma situação de “pleno emprego”. Comparem com o debate vigente hoje: “rachadinhas”, relação do governo com milícias, grau de subserviência do governo brasileiro aos EUA, e a última asneira verbalizada por Bolsonaro.
     Dilma sofreu impedimento por uma miudeza contábil, uma invenção, uma filigrana jurídica. Uma operação que os presidentes fazem muitas vezes em um mandato, e que foi chamada de “Pedalada Fiscal”. O processo todo foi tão farsesco, que não tiveram coragem de cassar os direitos políticos de Dilma Roussef. Não acharam contas no exterior, nunca recebeu propinas, não há nem mesmo um diálogo comprometedor dela com ninguém. Se Dilma tivesse cometido 1% das barbaridades do presidente atual, não teria ficado uma semana no poder.
     Quando afirmávamos em 2015, que a Lava Jato nada tinha a ver com corrupção e que era uma operação do governo estadunidense para roubar petróleo, água, recursos naturais em geral, biodiversidade da Amazônia, e também pelo interesse de abortar um incipiente e limitado processo de construção de um projeto nacional de desenvolvimento, nos acusavam de estar alimentando uma “teoria da conspiração”. Esses seis ou sete anos, desde a intensificação da construção do golpe, mostraram que a conspiração é muito mais grave do que qualquer teorização do fenômeno. As “confissões” dos crimes cometidos pelos responsáveis pela Lava Jato, trazidas em larguíssima escala pela Vaza Jato em 2019, através do site The Intercept, seria mais do que suficiente, é evidente, para anular toda a farsa do processo de impeachment. O fato de que isso não ocorreu mostra que os golpistas ainda estão no poder (nos vários poderes).
     Mas não dúvidas que somente um processo sofisticado de manipulação da população poderia possibilitar o apoio a uma operação entreguista como a Lava Jato e aceitar com naturalidade o repasse, ao Império do Norte, de petróleo, água, minerais e território para instalação de bases militares.
     O resgate e a compreensão dos intrincados fatos ocorridos no processo de impeachment é um pré-requisito para qualquer projeto de nação que possamos acalentar. A respeito do golpe e dos interesses envolvidos, vimos apenas a ponta do iceberg. Quando os acontecimentos esfriarem, teremos informações muito mais completas. Mas os fatos que sabemos já são muito medonhos. 

                                                                          *Economista    13.05.20

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