*José
Álvaro de Lima Cardoso
Em função de uma macabra combinação de fatores
(crise econômica gravíssima, Estado débil e o pior governo da história), o
Brasil é caso mais problemático do mundo no que se refere ao enfrentamento da
pandemia. No domingo o Brasil atingiu 22.666 mortes e 363.211 casos confirmados. Em menos de um mês o país passou de 100 mil casos
para mais de 300 mil infectados pelo coronavírus, com clara aceleração do
número, nas últimas semanas. Com os números disponibilizados até sexta, sabe-se
que o Brasil já ultrapassou a Rússia em número de casos confirmados, assumindo
a posição do segundo pais do mundo com o maior número de contaminados, atrás
apenas dos Estados Unidos, que tem 1,6 milhão.
Os
números disponíveis, que são gravíssimos, provavelmente estão subnotificados. O
país está se movendo na escuridão, a política dos governos é de
ocultação do tamanho da tragédia. Há cálculos de que os números reais possam
ser até 20 ou 30 vezes maior do que o anunciado. Mesmo que consideremos que a
subnotificação é de 10 vezes, muito abaixo de algumas estimativas, o número de
mortos, nesse caso, seria de mais de 220.000. O país caminha para ser o centro
mundial da doença, e claramente não está conseguindo controlar a crise. Com um
governo federal como o atual, não poderia ser diferente.
No
Brasil não há outra ação de enfrentamento da pandemia, além do isolamento. Mesmo
assim é um isolamento “meia boca”, que tem sido
flexibilizado a cada semana e atualmente abrange uma parte minoritária
da população. Desde o início da crise, não há testes, não há planos para isolamento
completo da população, não há investimentos no setor, não há política de amparo
ao pessoal que perde o emprego ou que ficou sem fonte de renda, como acontece
com boa parte da população. Apesar da situação na América Latina ser muito semelhante
à do Brasil, há diferenças muito importantes entre este e os vizinhos
latino-americanos. É a “gestão” da crise que pode explicar que o Brasil tenha
51 vezes mais mortes por coronavírus que a Argentina (até o momento), apesar da
diferença de população entre os dois países ser de 4,8 vezes.
Um fator importante no Brasil, também, é
a numerosa população pobre, que não tem as mínimas condições para um isolamento
social. Se calcula que 13,6 milhões de pessoas morem em favelas no Brasil. Estes
brasileiros têm que se amontoar, muitas vezes, em um ou dois cômodos, o que impossibilita
o isolamento, inclusive dos idosos. Além disso, não dispõem de reservas
financeiras para resistir, nem um mês, sem rendimentos do trabalho. Vivem de “bico
em bico”. Muitos perderam seus já precários ganhos com a pandemia. Esta é a
realidade do mundo todo: os mais atingidos pela pandemia são os mais pobres. As
classes médias estão sendo atingidas, mas os mais pobres, que são impactados
muito mais fortemente, sob todos os pontos de vista.
No mundo todo a crise evidenciou um
conjunto de desigualdades o qual já se conhecia, mas que agora está em realce:
renda, educação, acesso à equipamento digital, acesso à Internet. Sem falar em
desigualdades de riqueza patrimonial (por exemplo, habitação, que é fundamental
no processo de isolamento). No caso do Brasil as desigualdades estão se agravando
à medida que a crise se desenrola e a saída do isolamento começa na prática. É
ilusão achar que as contradições irão acabar no final da pandemia, inclusive
porque todas as medidas que o governo está tomando agravam a concentração de
renda. Passada a pandemia, não se sabe quando, os salários e outros tipos de
rendimentos estarão em níveis muito abaixo. O rebaixamento estrutural dos
rendimentos dos trabalhadores é uma estratégia constantemente verbalizada por
Paulo Guedes.
A política de isolamento puro e simples,
defendida por uma parte das elites, na medida em que vem sozinha (não há testagem,
não tem investimento em saúde) e na medida em que vem desacompanhada de um eixo
econômico de assistência efetiva à população pobre, é claramente classista, objetivando
proteger a classe média e os ricos.
Um agravante é que a pandemia surgiu já
com o setor de saúde em processo de desmonte. Em 2017, quando a Emenda
Constitucional 95 (não por coincidência chamada pelos sindicatos de “Emenda da
Morte”), entrou em vigor, as despesas com os serviços públicos de saúde
representavam 15,77% da arrecadação da União; em 2019, os recursos destinados à
área no orçamento da União já tinham caído para 13,54%, inferior inclusive aos
15% estabelecido pela Constituição Federal.
A explosão de casos do novo coronavírus
no Brasil estão escancarando as deficiências de financiamento do Sistema Único
de Saúde (SUS). Além da emenda da morte, há a intenção do governo Bolsonaro de desvincular
as receitas para o setor. Segundo estudo da Comissão de Orçamento e
Financiamento (Cofin) do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o SUS já
perdeu R$ 20 bilhões de financiamento entre 2016 até o ano passado. O Programa
Mais Médicos, vale recordar, foi inviabilizado logo no começo do governo
Bolsonaro, de forma irresponsável, com uma argumentação puramente ideológica e
usando todo tipo de mentiras. Bolsonaro liquidou com um programa que seria crucial
neste momento, especialmente para a população pobre, e situada nas regiões mais
interioranas do país.
A desvinculação das despesas de saúde dos
orçamentos da união, estados e municípios é um sonho que Paulo Guedes vinha
anunciando antes mesmo de assumir. Atualmente
os estados destinam 12% da Receita Corrente Líquida (RCL) para saúde e os
municípios 15%. Existem cálculos elaborados pelos especialistas na área que
estimam que, se houvesse desvinculação de receitas para o setor de saúde, o SUS
seria reduzido, em termos de capacidade de atendimento, a um terço do que ele é
hoje. É quase uma unanimidade entre o pessoal da área, que a tragédia do
covid-19 só não está sendo maior no Brasil em função do SUS. Com o Brasil
caminhando para o epicentro mundial da pandemia é possível imaginar como o pais
estaria com apenas um terço do SUS em funcionamento?
Antes do covid-19, o Brasil já vinha
enfrentando também o retorno de doenças que, teoricamente estavam extintas, ou relativamente
controladas, como mortalidade infantil, dengue, sarampo, sífilis, HIV/Aids e
tuberculose. Ou seja, já seria necessário ampliar os investimentos em pesquisa,
medicamentos em geral e recursos para atenção básica da população. Fundamentais
num país com numerosa população pobre e grandes desigualdades sociais em cada
região, assim como entre as regiões. Nos últimos anos, por exemplo, foram
extintas um grande número de equipes de Saúde da Família, com a demissão dos
trabalhadores do programa.
Antes da pandemia o país já enfrentava a
explosão da desigualdade social (evidenciada por inúmeros indicadores), trazida
pelo processo golpista. Além do aumento brutal do desemprego, do trabalho informal
e da disseminação de vínculos trabalhistas cada vez mais frágeis, advindos da
contra reforma trabalhista de 2017. Como
revela a pesquisa “Síntese de Indicadores Sociais 2019: Uma Análise das
Condições de Vida da População Brasileira”, divulgada recentemente pelo IBGE,
no ano passado, 25,3% da população brasileira estava abaixo da linha da
pobreza, com rendimentos inferiores a R$ 420 mensais, ou cerca de 40% do
salário mínimo atual.
Para uma parte majoritária da população
não é possível o isolamento social. Apenas uma fração consegue ficar em casa,
com a manutenção do emprego e rendimentos, mesmo que, em alguns casos,
rebaixados por algum tipo de acordo trabalhista. A IFC (Instituição Fiscal
Independente) do Senado Federal estima que o número de pessoas elegíveis para
receber o auxílio emergencial (coronavoucher) chegará a 79,9 milhões. Mas com o
agravamento do desemprego, que simplesmente explodiu a partir da pandemia, o
número pode chegar o 100 milhões, quase metade da população.
O país está enfrentando em 2020 a maior
recessão da história, com um recuo esperado da economia de 12% ou 13% no ano. Isto
após cinco anos da maior estagnação da história na economia brasileira. O efeito
que este processo está tendo sobre a renda e o emprego é absolutamente
dramático. Já se sabe que a fome, que
já tinha voltado em larga escala a partir de 2016, foi imensamente agravada,
ainda que careçamos de informações mais completas sobre o assunto. As crianças
pobres deixaram de ter a alimentação da escola. A alimentação das crianças e
jovens na escola é uma estratégia fundamental para o combate à fome,
tendo ajudado para que o pais saísse do Mapa da Fome da ONU, em 2014. Nos grandes centros urbanos já se observa que aumentaram
muito as filas nos locais públicos que servem comida barata, em restaurantes
populares. No aumento da necessidade as pessoas perdem a vergonha de procurar
restaurantes de R$ 1,00 ou R$ 2,00, subsidiados pelo poder público, cada vez
mais raros.
Segundo
o último censo da Prefeitura, do mês de dezembro/19, somente em São Paulo, existem
mais de 24 mil pessoas em situação de rua. Este
número provavelmente aumentou nestes primeiros cincos meses do ano. No começo
de maio a Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo alertou o governo e
as prefeituras para a possibilidade de uma convulsão social causada pelo
desemprego e abandono de parte da sociedade, em meio à pandemia. O padre Júlio
Lancellotti, monsenhor da Igreja São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca em São
Paulo, é grande conhecedor da situação da população de rua. Em sua igreja
passam mais de 500 pessoas todos os dias, que recebem alimentos (lanches e
biscoitos), além de produtos de higiene, água e até mesmo cuidados básicos. O
padre Lancellotti recentemente propôs que as vagas existentes nos hotéis
ociosos em São Paulo, sejam utilizadas para acolhimento da população de rua.
A
situação de São Paulo, guardadas as devidas diferenças, é um retrato do que
está acontecendo no país. De todas as vulnerabilidades e mazelas do Brasil, o
aumento da pobreza e da fome são as mais graves, por causarem sofrimento
imediato nas pessoas. Decorrentes de uma opção política, estas vulnerabilidades
desnudam a crueldade e o descompromisso com o pais da burguesia.
*Economista.
25.05.20
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