*José
Álvaro de Lima Cardoso
O pano
de fundo do atual ciclo dos golpes na América Latina, a partir da derrubada de
Manuel Zelaya, em Honduras (2009) é a luta encarniçada dos EUA para manter sua
hegemonia em nível mundial (política, econômica, bélica, cultural), atualmente ameaçada.
A América Latina, que os EUA consideram como o seu “quintal”, foi tomada por
governos progressistas a partir do final da década dos anos 1990 e primeira
década dos anos 2000. Venezuela, Equador, Argentina, Honduras, Brasil, Paraguai,
Uruguai, etc. passaram a ter governos eleitos democraticamente, com relativa identidade
popular e um certo grau de nacionalismo.
A
manutenção da hegemonia política e econômica de um país requer trabalho, mas certamente
traz muitas vantagens, o que explica, inclusive, o esforço dos países para
obtê-la ou mantê-la. Uma das vantagens é possibilitar a drenagem de uma maior
parte do produto mundial, para a sede do império, através de uma série de
mecanismos comerciais, financeiros e bélicos. A absorção de parte da riqueza
produzida no mundo possibilita a maior disponibilização de recursos para a
população interna, especialmente para suas classes mais abastadas.
Os
mecanismos para apropriação de recursos nos países mais fracos são inúmeros. Mas
o fato de que a transferência de riqueza, muitas vezes, ocorra através de
complexos mecanismos econômicos (como diferentes taxas de produtividade entre países
centrais e os subdesenvolvidos) não significa que os métodos primitivos de
expropriação dos mais fracos, pelos mais fortes, saíram de cena. Por exemplo,
em 2019 os Estados Unidos organizaram e ajudaram a financiar o golpe na
Bolívia, apeando do poder, um presidente eleito nos dias anteriores, Evo
Morales. Uma das informações confirmadas por várias fontes é que o general golpista, que exigiu a “renúncia” do
presidente Evo Morales (em 10.11.19), Williams Kaliman, foi comprado por um
milhão de dólares, pago pelo gerente de negócios da embaixada dos EUA na
Bolívia. Será que essa compra objetivou restaurar a democracia na Bolívia? O
detalhe relevante é que apenas 72 horas após o golpe, Williams Kaliman foi
morar nos Estados Unidos, país onde obteve um visto de residência permanente.
Consta também que Bruce Williamson, responsável pelos negócios na Embaixada dos
EUA em La Paz, foi responsável por entregar um milhão de dólares a cada chefe
militar e quinhentos mil para cada chefe de polícia.
Pode-se citar um exemplo ainda mais
atual, de como os EUA enfrentam sua “crise de hegemonia”. No dia 4 de maio, mercenários,
possivelmente financiados e organizados pelos EUA, tentaram sequestrar e matar o
presidente da República, Nicolas Maduro, a quem o governo norte-americano
acusa, sem nenhuma prova, de ser narcotraficante. A operação, chamada de
Gedeón, foi comandado pela empresa de segurança americana Silvercorp, e havia
implicado em meses de treinamento para ex-militares venezuelanos no deserto
colombiano Guajira. O líder da invasão foi Jordan Goudreau, um ex-militar dos
EUA que participou das guerras no Iraque e no Afeganistão como parte das forças
especiais do Exército. A incursão, que contou com vários outros ex-soldados dos
EUA, foi rapidamente aniquilada pela ação conjunta de militares e civis, com
saldo de 45 presos e 8 mortos. É possível, nestas alturas dos acontecimentos, que
algum incauto ainda acredite que este ataque criminoso a um país soberano tenha
como objetivo o combate ao tráfico de drogas ou a restauração da democracia na
Venezuela?
Mesmo
usufruindo de todas as vantagens de ser o principal país imperialista da terra,
os EUA enfrentam grandes contradições internas, porque o seu modelo de
desenvolvimento gera grande desigualdade social. Pelo menos desde o governo do
presidente Ronald Reagan (1981/1989), o estado de bem-estar norte-americano,
que já era fraco, foi sendo paulatinamente destruído. Se estima que atualmente
existam mais de 40 milhões de pobres nos EUA. Cerca de 40% dos estadunidenses se
queixam de que não conseguem cobrir despesas inesperadas com emergências, que
ultrapassem 400 dólares (ver o artigo: 40
milhões de miseráveis: The New Yorker expõe face oculta e cruel dos Estados
Unidos, de
Carlos Russo Jr, no Diálogos do Sul em 14.04.20).
O fato de
que os EUA tenham um número tão grande na condição de pobreza, representa uma verdadeira
bomba relógio. Uma sublevação dos trabalhadores dentro do país imperialista
mais rico do mundo teria um efeito político, econômico e social, simplesmente
imprevisível. Risco que deve ter influenciado a decisão dos EUA, há cerca de
uma década, de “retomar” os governos da América Latina para sua área de
influência.
No caso
do Brasil foi decisiva, na operação do golpe, a aproximação do pais com China e
Rússia, através do BRICS. Significava uma ameaça direta ao domínio
norte-americano, muito especialmente quando o bloco decidiu começar a
comercializar entre si com moedas dos próprios países. Esse fato parece ter
sido absolutamente decisivo.
No caso do Brasil, além do peso decisivo na
América do Sul (no referente a território, população e PIB), o país tomou uma
decisão que entrou em rota de colisão com os interesses geopolíticos dos EUA:
aproximação, via Brics, dos dois principais inimigos dos EUA. Por razões de
manutenção da sua hegemonia, portanto, os EUA promoveram golpes em toda a
América Latina, usando estratégias semelhantes nos países, mas adaptadas às
distintas realidades. Não nos enganemos: fez isso com o apoio de todos os
demais países imperialistas, que formam uma espécie de “clube”.
Jair Bolsonaro é uma continuidade
imperfeita do golpe, porque não era inicialmente, o candidato do imperialismo em
2018. Eles precisariam institucionalizar o golpe em 2018 com um candidato mais
palatável, que não provocasse tanto a ira da maioria dos brasileiros. Mas não
foi possível, pois nem o imperialismo dispõe de poder ilimitado. Mas Bolsonaro
é descartável. Não o substituíram ainda porque a equação de troca não está resolvida.
Além disso, têm que fazer uma transição à frio, pois não querem perder o
controle do processo que é, de fato, muito sensível, e com muitas
possibilidades abertas.
*Economista
18.05.2020.
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