O líder do MST defende uma resistência ativa, de diálogos constante com a sociedade, e classifica de escárnio a nomeação de Sergio Moro para a Justiça
Um dos “inimigos”
nominados pelo futuro
presidente Jair Bolsonaro, ao
lado de Guilherme Boulos, João
Pedro Stedile, figura
referencial do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem
Terra, não se sente
intimidado. “Por mais que o
discurso de Bolsonaro seja
raivoso, eu não acredito que a
violência vai se propagar no
campo”, afirma.
Na entrevista a
seguir, Stedile, com a lucidez
habitual, discorre sobre a
derrota do PT nas eleições
presidenciais, os erros da
campanha e as perspectivas
para os próximos quatro anos.
CartaCapital: Qual
deve ser o papel do campo
progressista nos próximos
quatro anos?
João
Pedro Stedile:
O primeiro passo é ter uma
leitura comum da natureza do
governo. Ele vai adotar
métodos de repressão, enquanto
tenta implantar os projetos de
interesse do capital
financeiro e internacional,
cujo principal papel é
recolonizar a economia
brasileira e abandonar o
projeto de desenvolvimento
nacionalista. As forças
populares precisam saber, no
entanto, que, por trás do
Bolsonaro, apenas porta-voz
desses interesses ou muitas
vezes um mero fanfarrão, há um
projeto para dominar o País.
Cabe a nós aplicar um programa
de resistência ativa, no
sentido de impedir qualquer
desmonte da soberania, as
privatizações e mais perdas de
direitos trabalhistas. Ao
mesmo tempo, é necessário
explicar à sociedade o que
realmente acontece. A nossa
melhor defesa é a mobilização.
CC: Na
campanha eleitoral, essas
forças não foram capazes de se
unir. Por que seria diferente
agora?
JPS: Os
partidos políticos, em
geral, têm suas
idiossincrasias que os levam a
pensar apenas nos interesses
corporativos. O problema não
está aí. Independentemente do
comportamento dos partidos,
temos de criar um movimento de
unidade nacional acima das
legendas, cujo foco deve ser
um programa mínimo em defesa
da democracia, da soberania,
dos direitos sociais e da
liberdade de expressão, da
pluralidade de ideias e
comportamentos.
CC: O
que contribuiu mais para a
derrota de Fernando Haddad, o
antipetismo ou o desencanto da
população com a política e os
políticos?
JPS: Temos
feito inúmeras avaliações no
MST, na Via Campesina, na
Frente Brasil Popular. A nosso
ver, a derrota de Haddad
deu-se por uma conjugação de
fatores. O primeiro foi a
inviabilização da candidatura
do Lula, símbolo da classe
trabalhadora. Como perceberam
que ele venceria no primeiro
turno, trabalharam durante um
ano e meio, em parceria com a
Lava Jato, para tirá-lo do
páreo. O segundo, nesta ordem
de importância, foi a aliança
maquiavélica de Bolsonaro com
a direita internacional. Ele
viajou para Taiwan, fez
contatos com Israel e com o
governo Donald Trump, tudo com
apoio de Steve Bannon. Foi o
mesmo modelo de campanha
praticado nos EUA, que elegeu
Trump.
Além disso, o uso de
tecnologias externas,
provavelmente com forças dos
serviços de inteligência
internacional, fez com que
computadores disparassem
milhões de mensagens pelo
WhatsApp e Facebook. Esta foi
a razão fundamental da mudança
de resultados em menos de três
dias. Basta citar a
candidatura do juiz Wilson
Witzel, no Rio de Janeiro.
O terceiro fator foi
o desânimo da população.
Bolsonaro soube captar esse
descontentamento e utilizou um
discurso antissistêmico. Entre
20% e 25% dos eleitores de
Lula votaram no Bolsonaro. São
trabalhadores, pobres, em
geral jovens da periferia, que
viram no deputado uma espécie
de Lula com o sinal trocado. O
quarto ponto é que as forças
progressistas se iludiram com
o tempo de televisão. E a
eleição decidiu-se pelas redes
sociais e no trabalho de casa
em casa. Quando despertamos,
não havia mais tempo. Mas
mesmo assim conseguimos virar
algo como 7 milhões ou 8
milhões de votos.
CC: Bolsonaro
não teve militância nas ruas?
JPS: Não
de forma organizada. Foi
uma militância
conspiratória que não aparece
para a sociedade. São os
policiais militares, que
tiravam a farda para fazer
campanha, setores das Forças
Armadas, em especial do
Exército, a maçonaria.
Bolsonaro foi muito
inteligente ao escolher o
general Mourão como vice. Ele
pôde construir um arco de
aliança maior. Mourãocarregou
parte das Forças Armadas da
ativa, pois ele foi até bem
pouco tempo integrante do
Comando Superior do Exército,
e sobretudo a maçonaria. Outra
força foram os evangélicos,
por meio dos pastores em
púlpitos, que manipularam os
fiéis com mentiras de toda
ordem contra Haddad.
CC: Qual
o grande equívoco cometido
pelo PT e seus aliados no
tempo em que ficou à frente do
governo?
JPS: Os
governos Lula e Dilma
cometeram muitos erros. Claro,
tiveram muitos acertos, mas
cometeram erros em vários
aspectos. Primeiro, para mim
determinante: Dilma não soube
interpretar as consequências
da crise econômica a partir de
2012. Desde então, a economia
não cresce. Em vez de elaborar
um plano econômico para salvar
o povo, os trabalhadores, a
Dilma convidou o Joaquim Levy,
que sempre foi o homem de
confiança do sistema
financeiro, para ministro da
Fazenda. A política econômica
do governo Dilma foi um
desastre.
CC: E
o que mais?
JPS: O
segundo erro foi o PT não ter
estimulado uma educação cidadã
para as classes mais pobres.
Não ter apostado no debate
para elevar o nível de
conhecimento político e
cultural. O terceiro foi não
ter democratizado os meios de
comunicação. Imagine se
distribuem todos os recursos
aplicados na Rede Globo para
milhares de rádios comerciais
ou comunitárias e jornais do
interior do Brasil? É o que
chamo de democratização das
fontes de informações, para
justamente estimular o que
acabei de falar, a educação
cidadã.
CC: No
Congresso tramita um projeto
que classifica os movimentos
sociais, notadamente o MST e
MTST, como “organizações
terroristas”. Como o senhor
classifica essa iniciativa?
JPS: É
um absurdo, sem nenhuma base
legal. Para aprovarem um
projeto dessa natureza, que,
tenho certeza, muitos de sua
base de apoio, inclusive ele,
Bolsonaro, gostariam, seria
preciso mudar a Constituição.
Melhor, teriam de rasgar a
Constituição. Ela garante e,
se não me engano, trata-se de
uma cláusula pétrea, que só
pode ser alterada por
plebiscito, o direito à
liberdade de organização e
expressão.
Qual o papel dos
movimentos populares como o
MST, o MTST e centenas de
outros? Organizar a sociedade,
ou seja, exercer um legítimo
direito constitucional para
resolver um problema concreto.
Seja de moradia, seja de
acesso à terra, seja de
educação, ou até mesmo de
salário. Existem, parece,
contradições no governo. O
futuro ministro da Justiça,
Sérgio Moro, em sua primeira
entrevista, descartou a
possibilidade de aprovar esse
projeto.
CC: Um
dos pilares da campanha de
Bolsonaro é a proposta de
liberação das armas. O senhor
teme um aumento da violência
no campo?
JPS: O
discurso do ódio e em favor do
armamento é uma retórica para
dar coesão ao grupo do
candidato. Nós, do MST, e
acredito que também o MTST,
deixamos claro à sociedade que
somos movimentos pacíficos. O
MST está há 34 anos na luta, a
sociedade nos conhece. Nossa
forma de defesa para evitar a
violência é sempre atuarmos
com muita gente. As massas se
protegem. Por mais que o
discurso seja raivoso, não
acredito que a violência vai
se propagar no campo. Ainda
que seja preciso redobrar os
cuidados, pois a repressão
virá menos do aparato estatal
e mais dos grupos que elegeram
o Bolsonaro.
CC: Que
grupos seriam estes? A UDR?
JPS: Ou
pistoleiros. Ou então algo
parecido com o que tem
acontecido no Sul de Minas
Gerais. Um juizinho se arvora
no direito de dar uma ordem de
despejo para um grupo de 450
famílias que está há 20 anos
em uma área em litígio. Essas
famílias construíram suas
vidas nesse local e certamente
vão reagir. Isso pode gerar um
conflito. Há forças na
sociedade para reagir. Neste
caso de Minas, o Ministério
Público estadual, por meio de
diversos procuradores, fez um
abaixo-assinado entregue ao
Tribunal de Justiça contra a
medida.
CC: Com
a escolha do juiz Sérgio Moro
para o Ministério da Justiça,
como o senhor avalia a
situação do ex-presidente
Lula?
JPS: A nomeação
do Moro é, antes de tudo, um
escárnio. É um tapa na cara,
não do povo, mas do Poder
Judiciário. Havia uma série de
denúncias, inclusive de
juristas renomados, de que
tudo não passava de uma
perseguição a Lula. Na
verdade, Moro só cumpriu
um script, que foi evitar a
candidatura do ex-presidente.
Como cumpriu a missão, agora
recebe um prêmio. Em qualquer
país democrático, diante de um
fato como esse, os integrantes
do Poder Judiciário pediriam
demissão coletiva ou a
demissão do ministro. Ainda
espero ver o STF criar
vergonha e respeitar a
Constituição. Não em relação
ao Lula, pois ele serviu de
instrumento. Quem está preso
não é mais um indivíduo, mas
uma ideia, a classe
trabalhadora.
CC: O
senhor teme a possibilidade de
um novo golpe militar, caso
Bolsonaro fracasse?
JPS: Como
disse várias vezes o general
Eduardo Villas-Bôas, nos
últimos dois anos corremos o
risco de um golpe militar.
Alguns estimulados pelo
próprio Mourão, agora
vice-presidente. O primeiro
quando veio à tona os
escândalos de Michel Temer. O
segundo, quando Villas Bôas
deu a atender que as Forças
Armadas não aceitariam a
candidatura de Lula. Não há,
porém, mais espaços para
golpes militares clássicos.
Aliás, recomendo a leitura do
livro Guerras Híbridas, no
qual o autor demonstra que, em
vez de mísseis, balas e
tanques, a estratégia passou a
ser a da ciberguerra, com
notícias falsas, diplomacia e
intervenção externa. Tal qual
se deu aqui.
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