*José Álvaro de Lima
Cardoso
As mais expressivas manifestações populares no
Chile, desde o fim da ditadura, as quais estamos testemunhando, são um vigoroso
repúdio da população ao horrendo quadro em que se transformou a economia
chilena para a maioria, com o desenvolvimento das políticas neoliberais. O
Chile foi o primeiro laboratório macabro do neoliberalismo na América Latina, e
durante um bom tempo, foi apontado como “modelo” na região. Recentemente, inclusive,
foi apontado pelo ministro da economia, Paulo Guedes, como a “Suiça da América
do Sul”.
No Chile, praticamente todos os serviços
foram privatizados, à exemplo do que aconteceu em outros países. Mas,
possivelmente o país é o único do mundo no qual as reservas de água têm donos,
e estes não têm nenhuma obrigação social, em contrapartida ao direito de posse.
Augusto Pinochet, fruto de um sangrento golpe de Estado no Chile, impôs o
Código de Águas, em que o direito ao uso da água se converteu em uma
propriedade absoluta para aqueles que o solicitem, isto é, as grandes empresas.
Atualmente toda a água do Chile é controlada por grandes empresas
hidrelétricas, agrícolas e mineradoras, sendo que, em geral são grupos
estrangeiros.
A privatização da água no Chile, feita em
favor de grandes grupos, além de ir contra os interesses da maioria absoluta, representa
a impossibilidade de fiscalização e controle, por parte da sociedade, do uso do
essencialíssimo produto. As empresas agrícolas, por exemplo, sem nenhum
controle, extraem água diretamente das nascentes, o que leva a falta do bem para
a população em várias regiões no país. Pequenos produtores agrícolas, enfrentam
dificuldades crescentes para produzir, em função da falta de água. Já para as
grandes empresas que se apossaram das fontes estratégicas de fornecimento de
água, o que existe é a abundância do produto.
O problema da falta de água, que é
diagnosticado em várias partes do mundo, afeta sempre a sociedade de forma
diferenciada. Como todo direito básico existente, quem enfrenta dificuldades no
acesso a água são sempre os mais pobres, o que ocorre tanto nos países
imperialistas centrais, quanto nos subdesenvolvidos. Os EUA e a Europa também enfrentam
grandes problemas de falta de água, a maioria dos rios dos EUA e do Velho
Continente estão contaminados e, no caso dos EUA, o próprio desenvolvimento recente
da indústria extrativa de gás de xisto contribui para a contaminação dos
lençóis de água.
Esse importante
debate ganhou um novo capítulo no Brasil, com a aprovação, no dia 30 de outubro,
em Comissão Especial da Câmara dos Deputados, do relatório do Projeto de Lei
3261/2019, que trata da Política Federal de Saneamento Básico e cria o Comitê
Interministerial de Saneamento Básico. Dentre outros tópicos, a lei prevê a abertura da concessão do serviço de
água e esgoto para empresas privadas. É que estão chamando de novo marco
legal do Saneamento. O projeto, dentre outros, define o prazo de um ano para
empresas estatais de água e esgoto anteciparem a renovação de contratos com
municípios. Nesse período as estatais de água e esgoto poderão renovar os
chamados “contratos de programa”, acertados sem licitação com os municípios. Segundo
o relator do projeto, o objetivo dessa última medida é possibilitar que as
empresas tenham uma valorização dos ativos e possam ser privatizadas por um
valor mais alto. Os destaques tentados pela oposição, que visavam melhorar um
pouco o projeto, foram todos rejeitados. Os defensores do projeto têm
perspectivas de sancioná-lo até dezembro próximo.
O senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), autor
do Projeto de Lei em tela, qualificou os parlamentares que se posicionaram contra
o projeto, de “corporativistas”. Classificado recentemente, por um outro
parlamentar, como o “senador Coca-Cola”, Jereissati, é direta, e
financeiramente, interessado na privatização dos serviços de água e saneamento
no Brasil. Seu patrimônio é estimado em R$ 400 milhões (informações de 2014), e
é um dos sócios do Grupo Jereissati, que comanda a Calila Participações, única
acionista brasileira da Solar. Esta última empresa é uma das 20 maiores
fabricantes de Coca-Cola do mundo e emprega 12 mil trabalhadores, em 13
fábricas e 36 centros de distribuição.
Na prática o novo Marco Regulatório do
Saneamento Básico, autoriza a privatização dos serviços de saneamento no país
(não nos enganemos: esse é o objetivo principal). O item mais polêmico do projeto
é a vedação aos chamados “contratos de programa”, que são firmados entre
estados e municípios para prestação dos serviços de saneamento. Os referidos contratos
atualmente não exigem licitação, já que o contratado não é uma empresa privada.
É evidente que, se não houverem os contratos de programa, a maioria dos
municípios teria que contratar serviços privados, pois não dispõem de
estruturas nos municípios para desenvolver atividades de saneamento. É muito
evidente que o projeto visa conduzir os municípios a contratarem empresas
privadas.
Esta lei provavelmente quebrará as
estatais de saneamento, o que abriria as portas para a privatização da água.
Água é a matéria-prima mais cara para a produção de bebidas em geral. Para cada
litro de bebida produzido, por exemplo, a Ambev declara usar 2,94 litros de
água. Não existe nenhuma transparência nas informações divulgadas, mas ao que
se sabe, as empresas de alimentos e bebidas contam com uma condição
privilegiada no fornecimento de água e esgoto. Obtendo, por exemplo, descontos.
No entanto, são essas empresas que estão à frente da tentativa de aprovar o
novo marco regulatório, possivelmente porque avaliam que, com o setor
privatizado, pagarão ainda menos pelos serviços.
Tudo indica que os golpes desferidos na América
Latina, com a coordenação geral dos EUA, têm também como favor motivador, os
mananciais de água na Região. Em 2016, logo após o golpe no Brasil, o governo
dos Estados Unidos iniciou negociação com o governo Macri sobre a instalação de
bases militares na Argentina, uma em Ushuaia (Terra do Fogo) e a outra
localizada na Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Um dos objetivos
na instalação destas bases, tudo indica, foi o Aquífero Guarani, maior reserva
subterrânea de água doce do mundo. O Aquífero,
localizado na parte sul da América do Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e
Paraguai) coloca a Região como detentora de 47% das reservas superficiais e
subterrâneas de água do mundo. Os EUA sabem que não há nação que consiga
manter-se dominante sem água potável em abundância, por isso seu interesse em
intensificar o domínio político e militar na Região, além do acesso à água
existente em abundância no Canadá, garantida por acordos como o do NAFTA
(Acordo de Livre Comércio da América do Norte, entre EUA, Canadá e México).
No começo de 2018, o “insuspeito” Temer
encontrou-se com o presidente da Nestlé, Paul Bucke, para uma conversa
reversada. Não é preciso ser muito sagaz para concluir que o tema da conversa
foi um pouco além de amenidades. Alguns meses depois, o governo Temer enviou ao
Congresso uma Medida Provisória 844, que forçava os municípios a conceder os
serviços, medida que não foi aprovada. No último dia de mandato Temer editou a MP
868, que tratava basicamente do mesmo assunto. Em março deste ano Tasso
Jereissati foi nomeado relator do referido. Quando a MP 868 perdeu validade no
começo de março, o senador Tasso encaminhou o Projeto de Lei 3261, de 2019, que
basicamente retomou o que constava da medida provisória. A proposta foi
aprovada em comissão e plenário em tempo recorde, e rapidamente chegou à Câmara
(o que demonstra a existência de forças muito poderosas por detrás do PL).
A pressão para privatização da água é muito
forte, conta com organizações financiadas pelos grandes grupos interessados,
especialmente do setor de alimentos e bebidas, e conta com cobertura do Banco
Mundial. Os defensores da ´privatização têm um discurso sinuoso, como se não
quisessem de fato, aquilo com o que sonham noite e dia. Sabe-se que a Coca-Cola
disputa água no mundo todo e certamente não o faz por razões humanitárias. Uma
unidade da empresa é acusada de ter secado as nascentes em Itabirito,
na região metropolitana de Belo Horizonte. A fábrica, segundo as organizações
de defesa do meio ambiente secaram nascentes dos rios Paraopeba e das Velhas –
responsáveis por quase toda o abastecimento de água de Belo Horizonte. A
Coca-Cola, claro, nega que a unidade esteja provocando falta de água na região
e afirma que possui todas as licenças para funcionamento.
No relativo ao problema da água tem vários
casos envolvendo a Coca-Cola no mundo. Há relatos de que no México, regiões
inteiras ficam sob “estresse hídrico” por causa de fábricas da empresa, que
inclusive contam com água subsidiada. Existem cidades no México, nos quais os
bairros mais pobres dispõem de água corrente apenas em alguns momentos, em
determinados dias da semana, obrigando muitas vezes a população comprar água
extra. O resultado é que, em determinados lugares, os moradores tomam
Coca-Cola, ao invés de água, por ser aquela mais fácil de conseguir, além do
preço ser praticamente o mesmo. Há moradores destes locais que consomem 2
litros de refrigerante por dia, com consequências inevitáveis sobre a saúde
pública.
Sobre o projeto de privatização das fontes
de água no Brasil quase não se ouve posições contrárias. Estas são devidamente
abafadas pelo monopólio da mídia. Exceto nos sites especializados e
independentes. É que na área atuam interesses muito poderosos, com grande
influência no Congresso Nacional, nos Governos, nas associações de classes,
empresariado, universidades. Os encontros realizados para discutir o assunto
são patrocinados por gigantes como Ambev, Coca-Cola, Nestlé, que têm interesses
completamente antagônicos aos da maioria da sociedade. Essas empresas investem uma
parcela de seus lucros com propaganda, vinculando suas imagens a temas como sustentabilidade
ambiental e iniciativas sociais, de acesso à água, e outras imposturas. Apesar
de tudo isso ser jogo de cena para salvar suas peles e exuberantes lucros,
enganam muitos incautos.
Apesar de extremamente
importante, não é muito conhecido no Brasil o episódio intitulado “A guerra da
água da Bolívia”,
ou “Guerra da água de Cochabamba”. Os
grandes grupos de mídia que dominam a informação, a maioria ligados aos
interesses do imperialismo, por razões óbvias, escondem o acontecimento. Entre
janeiro e abril de 2000, ocorreu uma grande revolta popular em Cochabamba,
a terceira maior cidade do país, contra a privatização do
sistema municipal de gestão da água, depois que as tarifas cobradas pela
empresa Aguas del Tunari (por
“coincidência”, pertencente ao grupo norte-americano Bechtel) dobraram de preço.
É fácil imaginar o que isso pode significar, em termos de qualidade de vida,
para uma população extremamente pobre.
Em 8
de abril de 2000, Hugo Banzer, general e político de Extrema Direita que tinha assumido o governo da
Bolívia através de um golpe de Estado, declarou estado de sítio. A repressão correu solta e a
maioria dos líderes do movimento foram presos. Mas a população não recuou e
continuou se manifestando vigorosamente, apesar da grande repressão. Em 20 de
abril de 2000, com o governo percebendo que o povo não iria ceder, o general
Hugo Banzer desistiu da privatização
e anulou o contrato vendilhão de concessão de serviço público, firmado
com a Bechtel. A intenção do governo era celebrar um contrato que iria vigorar por
quarenta anos. Graças à mobilização da população, a lei 2029, que previa a
privatização das águas do país, foi revogada.
*Economista.
04.11.2019.
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