*José Álvaro de Lima Cardoso
O domingo, 27, foi o oitavo dia de protestos
no Chile. Após a impressionante escalada do número de pessoas nas manifestações,
poucos lembram que o movimento foi desencadeado a partir de um aumento do preço
das passagens do metrô, equivalente a 30 pesos (cerca de 16 centavos de real).
Até o dia 27 tinham sido registradas 19 mortes, 2.840 pessoas detidas e 295
feridas por armas de fogo (é possível que estes números estejam subestimados).
Há uma escalada não apenas no número de manifestantes nas ruas (estima-se que
cerca de 10% da população do Chile saiu às ruas), mas também nos níveis de
consciência da população.
Com uma semana de manifestações o governo teve que ceder em várias
reivindicações, algumas históricas, como a redução da jornada de trabalho. Na
quinta-feira (24), a Câmara havia votado a redução da jornada de trabalho para
40 horas semanais (que hoje é de 45). Sexta-feira, 25, havia uma reunião
prevista da Comissão de Trabalho e Seguridade Social para debater o projeto apresentado
pelo governo chileno para melhoria do sistema de pensões e de capitalização
individual, que compõem a Previdência Social local.
Está também prevista para ser votada nos próximos dias uma lei,
apresentada no calor das manifestações, que prevê que as concessionárias de
energia assumam os custos de retirada e instalação de medidores de luz. Essa
proposta não surgiu por acaso. É muito grande a revolta da população com os
preços dos serviços essenciais em geral, que são considerados ruins e caros. No
início da mobilização popular o prédio da empresa de energia elétrica do
país, a Enel, que é privada, foi
incendiado, assim como algumas lanchonetes do McDonald’s. Os manifestantes
atearam fogo também no prédio do El Mercurio, jornal conservador,
localizado na cidade turística de Valparaíso.
Pelo menos uma unidade do supermercado Líder (pertencente ao grupo estadunidense
Walmart), após ser saqueado, foi também incendiado.
Como se sabe, o Chile é uma espécie de laboratório do neoliberalismo, que
foi implantado alguns anos após a instalação da sangrenta ditadura Pinochet,
advinda do golpe de Estado de 1973, articulado pelos EUA. As mais expressivas
manifestações populares no Chile, desde o fim da ditadura, obviamente não são
pelos 16 centavos de real, que foi apenas a fagulha do processo que incendiou o
Chile. Na verdade, elas representam um vigoroso repúdio do povo, ao monstruoso quadro
em que se transformou a economia chilena para a maioria da população, com a
implantação do neoliberalismo:
a) A água no Chile está nas mãos de
empresas privadas, que enriquecem e mantêm seus altíssimos lucros às custas da
distribuição deste bem essencial. O governo Pinochet fez o Código de Águas, em
que o direito ao uso da água se converteu em uma propriedade absoluta para
aqueles que o solicitem. No Chile de hoje são as grandes empresas, agrícolas,
mineradoras, boa parte delas multinacionais, que detêm o controle das águas.
Uma parte crescente da população tem que escolher entre lavar roupa ou
cozinhar, pois a quantidade de água diária a que tem acesso, é suficiente
apenas para uma, ou outra coisa;
b) todas as universidades “públicas” são
pagas, e, não raro, são mais caras do que as escolas particulares;
c) mais de 50% da população sobrevive
com menos de um salário mínimo;
d) não existe sistema público de saúde
gratuito no país. Quem consegue pagar um plano de saúde privado, se contrair
uma doença grave e sobreviver, se torna prisioneiro dos bancos, pois assume uma
dívida que terá que pagar durante décadas. Mais de 80% da população não dispõe
de dinheiro para pagar a saúde privada;
e) cerca de 80% dos aposentados recebem
menos de um salário mínimo (em torno de US$ 424) de benefício. Quase metade
(44%) se encontra abaixo da linha da pobreza, ou seja, sobrevive com até US$
5,5 por dia, ou R$ 660 por mês, segundo o critério do Banco Mundial;
f) a jornada de trabalho no Chile é de
45 horas, os trabalhadores têm direito a 15 dias de férias e meia hora para
almoço;
g) como vigora no país a pluralidade
sindical total, que permite a existência de vários sindicatos por empresa ou
setor, as entidades praticamente não têm nenhum poder de mobilização. Muitas
vezes são os patrões que organizam os sindicatos, mantendo-os assim sob
controle.
A mais importante e maior mobilização do povo chileno desde a ditadura, é
claramente uma reação da maioria, às décadas de super exploração e retirada das
condições de vida e dignidade da população. As políticas que estão sendo
repudiadas com muita clareza pela população do Chile, estão sendo implantadas
no Brasil, rapidamente, a partir do golpe de 2016. Por exemplo, a destruição da
previdência social, que acabou de ser aprovada, foi inspirada em parte no
modelo chileno, a começar pelo modelo de capitalização (medida que não passou
no Congresso, mas que será imposta através de lei específica).
Ainda que com especificidades de toda ordem em cada país, o ataque do
Império tem caráter subcontinental, ele pretende destruir direitos e elevar a
exploração dos países subdesenvolvidos para aliviar a crise no centro do
capitalismo. Como sempre fizeram, mas agora de forma mais determinada, em
função da gravidade da crise mundial, procuram descarregar os efeitos da crise
sobre as nossas cabeças. Bolsonaro e Paulo Guedes estão implantando exatamente o
modelo de economia, que motivou a ira do povo chileno. Mas no Brasil o modelo é
ainda pior, porque vem associado a um nível de entreguismo e subserviência, sem
paralelos no mundo.
*Economista.
29.10.2019.
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