*José Álvaro de Lima Cardoso
Por esse
pão pra comer, por esse chão pra dormir
A
certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me
deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe
pague (verso da música Deus lhe Pague, de Chico Buarque)
A PEC 6/2019, aprovada em primeiro turno no
Senado na terça-feira, na prática uma ação para desmontar a previdência social,
significa antes de tudo, “negócios”. A Seguridade Social no Brasil movimenta R$
740 bilhões todo ano. Os bancos não apoiaram o golpe por acaso, estão de olho
nesse filão de oportunidades. O desmonte das estruturas públicas de atendimento
a população (no caso da seguridade, uma espécie de espinha dorsal da estrutura social
brasileira) está sendo realizado num momento em que o país constata uma explosão
da desigualdade de renda, jamais vista.
Desde quando, em 1960, o IBGE passou a coletar
informações sobre o rendimento da população nos censos demográficos, nunca se
havia observado uma deterioração tão rápida dos indicadores. Sobre o assunto,
vale a leitura do artigo do economista Márcio Pochmann (Brasil tem maior
explosão da desigualdade desde 1960) que revela que a combinação, depois do
golpe de 2016, de decréscimo econômico, com a desestruturação do mundo do trabalho, tem levado a uma
piora inédita de todos os indicadores. O índice de Gini[1]
saltou de 0,49, em 2014, para 0,63, em 2019 e nesse período a economia
decresceu 0,8% anualmente e o PIB per capita caiu em média de
1,5% ao ano. No mesmo período a taxa de pobreza cresceu ao ritmo de 10,4% ao
ano, enquanto a taxa de desemprego aumentou 20,1% ao ano, na média dos anos de
2015 a 2019. A evolução dos dados, fato impressionante, nos dá uma pista (mas
apenas uma pista) do sofrimento que os trabalhadores mais pobres têm passado nos
últimos anos.
Uma proposta de política para a
Previdência Social define que tipo de sociedade queremos edificar. Não se trata
só da concessão de um benefício, mas de um “projeto de sociedade”. Sistemas de
seguridade social são completamente incompatíveis com a hiper exploração dos
trabalhadores. O sistema de
Seguridade Social brasileiro foi obtido numa outra correlação de forças, no
interior da qual os trabalhadores conseguiram impor essa conquista,
indiscutivelmente importante. Tal correlação já não existe mais, a partir
principalmente do golpe e da crise econômica atual. Os trabalhadores se
encontram numa conjuntura de enorme resistência. Por isso o inimigo trabalha
para desmontar o sistema, e demais direitos, com muito apetite.
A PEC da previdência não é algo isolado,
vem na esteira de processo de destruição das estruturas públicas desde o golpe
de Estado. A seguridade social tem valor estratégico no Brasil. É o principal
instrumento que os brasileiros dispõem para enfrentar as situações de velhice, doença, desemprego, invalidez, etc. Os
princípios definidos na Constituição permitiram construir nos últimos 30 anos
políticas públicas que, pelo menos, foram capazes de promover alguns níveis de
inclusão, permitindo que setores significativos da população escapassem da
miséria e da fome.
Quando não há justiça e boas intenções nas
ações públicas, o que pode prevalecer é a mentira. Um grupo de pesquisadores da
Unicamp publicou um estudo inédito sobre os dados apresentados pelo governo para
justificar a a contrarreforma intitulado: “A falsificação nas contas
oficiais da Reforma da Previdência: o caso do Regime Geral de Previdência
Social”. O estudo aponta que os cálculos inflam o custo fiscal das
aposentadorias atuais para justificar a reforma e exageram a economia fiscal e
o impacto positivo da Nova Previdência sobre a desigualdade. O estudo mostra
cinco principais mentiras, sempre sobre aspectos centrais da argumentação
governista para desmontar o sistema atual de previdência. Não se trata de
visões diferentes sobre temas cruciais relacionados com a previdência. São manipulações,
dados falsos, informações propositalmente erradas. Dado o processo atual que
vivemos, alguém poderia se surpreender com a constatação do estudo?
Desenhando o cenário de uma “tempestade
perfeita” a aprovação da PEC coincide com o risco de grave crise financeira
internacional, inclusive com risco de choques de oferta, como tem sido apontado
por alguns economistas. Choques ligados principalmente às disputas comerciais,
monetária, cambiais e militares entre Estados Unidos e China. Diferentemente da
crise de 2009, desta vez o Brasil será pego totalmente no contrapé, com o pior
governo da história.
Apesar da crise do golpe e da Lava Jato, ser a
outra face da moeda do programa do Paulo Guedes, os golpistas vêm tentando
separar essas duas questões. Em face das denúncias permanentes da Vaza Jato (e
de outras fontes), ninguém dá mais um tostão furado por Sérgio Moro e pela Lava
Jato. Mas o governo conseguiu passar a destruição da previdência esta semana,
em primeiro turno, no Senado Federal e tem encaminhado um conjunto de ataques
contra direitos, conquistas sociais e soberania nacional. Mas a segregação
entre o governo e a Lava Jato é uma manobra difícil de fazer porque a crise da
Lava Jato significa a crise do governo Bolsonaro, na medida em que este é fruto
da primeira.
O golpe e a operação Lava Jato tiveram como
resultado o governo Bolsonaro, concretamente. Esse fato, em meio a uma brutal
crise econômica e social, imprime ao cenário um enorme potencial de explosão. É
importante considerar que a PEC que foi aprovada, assim como o conjunto dos
ataques à civilização tem como objetivo jogar o ônus da crise nas costas dos
trabalhadores. Desde que as crises se tornaram cíclicas e inevitáveis, no
sistema capitalista, sabe-se que elas têm a funcionalidade de destruir direitos
e fazer a classe trabalhadora baixar a cabeça.
*Economista.
03.10.19
[1] Instrumento matemático utilizado para
medir a desigualdade social de um determinado país, unidade federativa ou
município. Quanto menor é o valor numérico do coeficiente de Gini, menos
desigual é um país ou localidade.
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