*José Álvaro de Lima Cardoso
Nos últimos tempos, no contexto mais amplo de ataques ao setor
público, tem se intensificado também as investidas contra o funcionalismo
público. Dentre outros objetivos, esta visa colocar a população contra os
servidores. Se a população avaliar que o servidor é privilegiado, que não quer
trabalhar, que ganha muito, fica mais fácil desmontar os serviços de saúde e
educação, objetivos inconfessáveis da campanha. Regra geral tal campanha, a
exemplo da campanha em geral pela privatização de estatais, é alicerçada em
mentiras, senso comum e mistificações.
Por
exemplo, se dissemina sem dó o diagnóstico de que o Estado no Brasil é muito
inchado, que existem muitos servidores públicos, serviço público é um “cabide
de empregos”, etc. O fato é, que o Brasil é um dos países que menos tem funcionários
públicos, na comparação com a população total de trabalhadores do país. Nessa comparação
fica atrás, por exemplo, de quase todos os países europeus, que têm em média
entre 10% a 15% do total de empregados no serviço público. Segundo o Atlas do
Estado, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os vínculos de
trabalho do setor público no Brasil aumentaram mais de 82% nas últimas duas décadas,
saindo de cerca de 6,3 milhões de trabalhadores em 1995 para 11,5 milhões em
2016. Esse total inclui todos os segmentos: servidores concursados,
estatutários, regidos pela CLT, e os de cargos comissionados. O total de vínculos,
inclusive, é diferente do número de funcionários, visto que uma mesma pessoa
pode ter mais de um vínculo. O fato é que, mesmo com a elevação nos últimos
anos, o número de servidores no Brasil é inferior à média dos países
desenvolvidos.
Se pegarmos
os dados de 2017, verificamos que no Brasil cerca de 12,1% da população ocupada
trabalhava no setor público. Este percentual equivale a dois terços dos 18% de
média das nações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)
e mesmo em relação a países mais neoliberais, como os EUA (15,2%) e Reino Unido
(16,4%). Países estes, que vem desmontando seus estados de bem-estar social,
que algum dia já foi mais forte (especialmente no caso do Reino Unido).
O Brasil gastou no ano passado o equivalente a
cerca de 13,7% do PIB com salários do funcionalismo público, incluindo todas as
esferas e poderes. Dos 11,4 milhões de vínculos de trabalho no setor público, uma
boa parte atua em áreas sociais, como saúde e educação. Segundo dados da
RAIS/2018, metade dos funcionários públicos ganhava até 3 salários
mínimos (R$ 2,9 mil, considerando o valor do mínimo de 2018).
Apenas 3% ganhava mais do que 20 salários mínimos (R$ 19,1
mil). Um funcionário público brasileiro ganha, em média, 8%
a mais do que um trabalhador que exerce função semelhante no setor
privado.
Segundo
dados do Banco Mundial, num conjunto de 53 países, na média internacional, o
funcionário público ganha 21% a mais que o trabalhador do setor privado. Portanto,
no Brasil, a diferença é bem menor. A diferença para mais, de 8% em funções
similares no setor público, não significa nada, considerando que no setor
privado os salários de uma forma geral são extremamente baixos. O setor público
tem obrigação mesmo de melhorar os salários, até porque faz exigências maiores
de qualificação.
É
verdade que nos poderes da República há muita diferença salarial, o que, frequentemente,
confunde o observador. No Executivo, por exemplo, onde se concentram professores,
médicos, policiais, apenas 25% dos trabalhadores ganham mais de R$ 5 mil.
No poder Legislativo, onde estão vereadores, deputados, senadores e seus
funcionários, mais de 35% recebe mais de R$ 5 mil. No Judiciário,
onde trabalham juízes, promotores, funcionários de fórum, o percentual dos que
ganham acima de R$ 5.000 sobe para mais de 85%.
É evidente que o setor
público brasileiro contém importantes distorções salariais, que precisam ser
corrigidas. Os 16,2 mil juízes em atividade no Brasil ganham, em média, R$ 46
mil mensais e três em cada quatro recebem mais do que o teto do funcionalismo
público, de R$ 39.293 mil. Atualmente um auxílio-moradia de um juiz está
custando R$ 4.377,00. Praticamente duas vezes o salário médio de todos os
ocupados no Brasil. É um negócio vergonhoso, uma clara distorção que precisa
ser corrigida.
Apesar desse tipo de distorção (certamente existem outras), esta não é a
realidade da maioria dos servidores públicos. Como vimos, metade dos funcionários públicos ganha até
3 salários mínimos. Porém, a partir dessas distorções salariais, se construiu
uma montanha de mentiras a respeito do funcionalismo público, que se dissemina
no seio da sociedade, visando atingir os serviços públicos de uma forma geral,
com intenção de privatizá-los. É uma verdadeira máquina de trituração da
reputação dos servidores públicos. São ataques sórdidos, que obedecem a uma
estratégia internacional de destruição do serviço público, desencadeada, dentre
outros, por grandes empresas multinacionais, atrás de bons negócios.
Enquanto
se desenvolve a estratégia de desmonte dos serviços públicos, o Brasil continua
destinando quase metade do orçamento federal para o pagamento de juros e o
rolamento da dívida pública federal. No ano passado o governo federal destinou
aos banqueiros e rentistas a soma de R$ 1,038 trilhão ou 38,27% de todo o
orçamento público federal. O governo Bolsonaro, segundo o Tribunal de Contas da
União, gastou apenas R$ 11,4 bilhões, dos R$ 38,9 bilhões, da verba emergencial
destinada ao combate da pandemia. Isso no instante em que o Brasil emplaca 3.460.413
contaminados e 111.000 mortos (isso, registrados). Enquanto isso, pela Lei
Orçamentária Anual – LOA/2020, estão previstos R$ 409,6 bilhões para o
pagamento de “Juros/Encargos da Dívida Pública” neste ano.
São
quase meio trilhão de reais. Isso representa 1,1 bilhão de reais todo santo
dia, somente este ano. Se transfere todo ano, bilhões e bilhões para algumas
centenas de rentistas (que em boa parte nem moram no Brasil). Somente os gastos
com os juros e encargos da dívida pública deste ano já totalizam um valor
superior ao que o governo espera arrecadar com a torra de patrimônio púbico
neste ano. E, praticamente, nem se fala nisso. Querem entregar a Eletrobrás, um
patrimônio estratégico, por 18 bilhões e destinam diariamente um R$ 1,1 bilhão
para os rentistas, em nome de uma dívida que não resiste a uma auditoria
pública.
O
debate sobre uma reforma administrativa deve seguir caminho contrário ao que a
extrema-direita e os golpistas estão querendo trilhar. Ou seja, o debate deve
ser feito a partir das necessidades do país e de seu povo, em busca do
desenvolvimento econômico e social. Mas está claro que é impossível fazer tal
debate com o atual governo, que na verdade quer destruir os serviços públicos e
transformar o Brasil definitivamente numa colônia dos EUA. As questões do
debate não são meramente técnicas e sim também políticas, ligadas à correlação
de forças. A discussão sobre o Estado brasileiro, funcionalismo e serviço
público tem que ser precedida da retomada da democracia no país.
*Economista.
24.08.2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário