*José Álvaro de Lima Cardoso
”Poucos de nós
temos consciência do caráter profundamente anti-humano do subdesenvolvimento.
Quando compreendemos isto, facilmente explicamos por que as massas estão dispostas
a tudo fazer para superá-lo” (Celso Furtado, A pré-revolução brasileira).
Em
26.07.20 comemorou-se 100 anos de nascimento de Celso Furtado, tido como um dos
grandes “intérpretes” do Brasil. Durante
mais de cinquenta anos, esse paraibano de Pombal se dedicou à difícil e (fascinante)
tarefa de entender a economia e a sociedade brasileiras. A obra de Celso
Furtado reflete a permanente tentativa de entender o Brasil, no contexto
latino-americano, e propor saídas para o subdesenvolvimento crônico, que acomete
toda a Região. O essencial da exuberante obra do autor, mesmo tendo sido
formulado mais nas décadas de 1950 e 1960, é muito atual. Dentre outras razões,
porque os problemas que ele catalogou não foram resolvidos (por exemplo, o Subdesenvolvimento).
O autor misturou
fina inteligência e o conhecimento de economia, com evidente sensibilidade
social. Sua abordagem, ainda mais para os anos de 1950, era heterodoxa, se
opunha aos padrões estabelecidos pelas teorias dominantes. Celso Furtado
defendeu em suas obras e palestras, com a necessária frequência, uma ideia
fundamental para os dias atuais: os países que se sujeitam a divisão
internacional do trabalho, aceitam-na tal como está colocada, estarão condenados
ao subdesenvolvimento. Ou seja, não há desenvolvimento social e econômico sem
postura soberania. Uma ideia chave, especialmente em tempos de descarada
capitulação.
A abordagem
histórica perpassa as obras de Furtado. Como dizia ele, no “começo eu pensava
ser historiador”. Mas o economista lia sobre muitos assuntos como ciência
política, antropologia, filosofia, geografia, métodos quantitativos, além de
história econômica, é claro. Levava muito a série a ideia de que para ser um
bom economista, tinha que olhar muito além da economia.
A obra de Celso Furtado tem como preocupação
central a questão do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, incluindo a forma
como as economias subdesenvolvidas e periféricas se inserem no sistema mundial.
Ao contrário dos economistas da Escola Neoclássica, que destacavam as vantagens
relativas da especialização produtiva dos países atrasados (ou
subdesenvolvidos), Furtado irá mostrar em seus textos que a natureza das relações
entre países centrais e subdesenvolvidos, bem como a própria estrutura social
interna dos países periféricos, impedem o desenvolvimento e as mudanças
sociais.
Celso
Furtado tinha constante preocupação também com o planejamento e com o
desenvolvimento regional. Lhe interessava grandemente o desequilíbrio regional
do Brasil, tendo defendido praticamente em toda a sua vida profissional, a
necessidade de um amplo incentivo para o desenvolvimento nordestino. Por isso participou
do Conselho de Desenvolvimento Econômico do Nordeste e, fomentou a criação de
um órgão de planejamento regional – a Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste (Sudene) em 1959. As formulações de Celso Furtado relacionam-se ao
chamado enfoque Estruturalista Latino-Americano, que teve como centro os
intelectuais e técnicos reunidos na Comissão Econômica para a América Latina e
o Caribe (CEPAL), instituição criada em 1948 pela Conselho Econômico e Social
das Nações Unidas.
A Economia Estruturalista é uma
abordagem da economia que destaca a importância de levar em conta
características tipicamente estruturais ao empreender a análise econômica. Esta
escola surgiu basicamente com o trabalho da CEPAL e está associada
principalmente ao seu diretor Raúl Prebisch e Celso Furtado. Uma das
preocupações centrais das formulações da Cepal era como o Estado poderia contribuir
para o sistema de desenvolvimento econômico nas sociedades periféricas. Preocupação
que se mostrou muito legítima, pois todo o desenvolvimento brasileiro desde
então se deu a partir do coordenação e apoio do Estado.
Ao estudar
o subdesenvolvimento do Nordeste, Furtado percebeu que o problema da seca integrava
um contexto de atraso, concentração de renda, baixa produtividade, e dominação econômica
e política por parte das oligarquias. Ele irá mudar, juntamente com outros
grandes conhecedores da Região, a perspectiva sobre os problemas do Nordeste. Tanto
a Sudene quanto o Banco do Nordeste representavam a nacionalização da questão
nordestina, relacionando-a à integração regional. A Sudene e o planejamento
estatal tornaram-se recursos centrais para o desenvolvimento nordestino.
Um dos
pontos fundamentais dessa proposta de reformulação trazida pela Sudene foi o
combate ao que se convencionou chamar de indústria da seca, ou seja, o uso dos
recursos federais em proveito da estrutura de poder tradicional, das
oligarquias nordestinas, sobretudo nas regiões mais secas do semiárido nordestino.
A ideia de Furtado era transformar um problema, que era a pobreza e a
desigualdade do Nordeste em relação ao resto do país, numa tremenda solução. Para
tanto, defendia a realização de uma reforma agrária, que desse outro destino ao
excedente rural, que não o uso improdutivo, e possibilitasse um vigoroso incentivo
à industrialização da região. O que contribuiria para o desenvolvimento do país,
como um todo.
Furtado percebia
que o futuro do Brasil como nação dependeria da transformação do Nordeste, pois
as divisões regionais e sociais acabariam por comprometer o desenvolvimento, e
a própria unidade política do Brasil. Celso Furtado era um radical no
pensamento, mas um conciliador na política. Sabia que suas propostas não seriam
“engolidas” por outros, teria que convencê-los. Mas suas propostas de
industrialização, combate à pobreza, e às desigualdades regionais, entravam em
rota de colisão com os setores conservadores e com a burguesia nacional,
especialmente a mais atrasada e entreguista. Era um período de muita ebulição
política e social. O país tinha sofrido uma tentativa de golpe de Estado em (1954),
mais uma tentativa de golpe em 1961 (militares não queriam deixar João Goulart
assumir) e os mesmos conspiradores e golpistas, sob coordenação dos EUA, estavam
articulando outro golpe, que viria a ser sacramentado em 1964.
Em 1963,
já como ministro de Planejamento de João Goulart, Furtado lança o Plano Trienal,
elaborado em apenas três meses por uma equipe coordenada por ele. As políticas
econômicas iniciais de Goulart não tinham funcionado. O objetivo do Plano
Trienal era controlar a inflação (foi de 51,6% em 1962, 79,9% em 1963, e em
rota de elevação) retomar o crescimento, e distribuir melhor a renda. O plano
previa uma política de substituições das importações gradualmente, aumento dos
investimentos do Estado, crescimento rápido da indústria. Um dos objetivos do
Plano era criar condições para que os frutos do desenvolvimento se distribuíssem
de maneira cada vez mais ampla pela população. Para isso os salários reais
deveriam crescer com taxa idêntica à do aumento da produtividade do conjunto da
economia, após os ajustamentos decorrentes da elevação do custo de vida (disso
os golpistas de 1964 não perdoariam Furtado).
Suas
propostas à época (e ainda hoje), eram “subversivas”: reforma agrária, mudança na estrutura tributária, distribuição de
salários conforme a produtividade. Em países
dependentes e periféricos, todas essas reformas capitalistas, assumem um
caráter revolucionário, dado o conservadorismo da burguesia brasileira e à
forma subordinada de inserção do Brasil na economia internacional. A própria
proposta de industrialização do pais e da região nordeste assumia um caráter transformador
muito forte. Não se conseguiria implementar aquelas mudanças à frio, apenas
através de medidas governamentais e negociadas, como a história iria demonstrar.
É claro
que as medidas propostas no Plano Trienal continham problemas e lacunas, como
ocorre com 100% dos planos econômicos. Haveria muito o que debater tanto no
Plano Trienal, quanto no conjunto da abordagem de Celso Furtado sobre outros
temas. Mesmo porque, a crítica fundamentada é vital ao desenvolvimento da
ciência e da reflexão. Mas não se tratava de deficiências técnicas do Plano
Trienal, e sim da viabilidade política de sua implementação. O golpe de 1964
mostrou que, naquela conjuntura, não havia correlação de forças para
implementar um plano que, mesmo que moderadamente, atendia ao grosso dos
interesses nacionais.
Após o
golpe de 1964, a ditadura militar reconfigurou a Sudene, mantendo o poder dos
coronéis, e implementou mecanismos autoritários de planejamento na utilização
dos recursos vindos do governo federal. Com o golpe, Celso Furtado, um
reformista e conciliador, é exilado. Furtado não poderia ser mesmo suportado
pela ditadura: gostava do Brasil e do seu povo, e era nacionalista. Além de
tudo era um sujeito extremamente culto, autor de quase 40 livros. Isso tudo são defeitos insuportáveis para uma
ditadura repressora do seu povo e lambe botas do imperialismo, como foi a de
1964.
Dentre
as ideias de Celso Furtado, merece destaque a de que os países que se sujeitam a
divisão internacional do trabalho, aceitam-na tal como está colocada, estão
condenados ao subdesenvolvimento. Seria esperar muito que o atual Ministro da Economia,
Paulo Guedes, tivesse lido Celso Furtado. Mas não trata de conhecimento do
problema, não é uma questão de domínio técnico da questão. É que a
implementação das mudanças que Celso Furtado propunha, significaria retirar
poder da burguesia monopolista internacional. E Paulo Guedes está ao serviço
dessa.
*Economista.
14.08.20
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