quinta-feira, 16 de julho de 2020

Brasil, epicentro emergente da fome


                                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso

     A sobreposição de crises no Brasil (econômica, sanitária, política) levou a um empobrecimento, possivelmente inédito, da classe trabalhadora. Sobre o assunto, não faltam indicadores. A ONG Oxfam publicou recentemente (09.07) um relatório O vírus da fome: como a covid-19 está aumentando a fome num mundo faminto, que coloca o país como "epicentro emergente" da fome extrema. No estudo, no qual o Brasil aparece com esta classificação, ao lado de Índia e África do Sul, a ONG analisa os impactos da doença em países onde a situação alimentar e nutricional já era muito grave antes do início da pandemia. Como lembra o estudo, em 2014 o pais vinha vencendo a guerra contra a fome, graças a um conjunto de medidas, que inclui ações integradas, crédito aos pequenos produtores rurais e um conjunto de políticas que incluíram a criação de um Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). 
      Os dados da Oxfam estão em linha com informações divulgados pela FAO, há dois dias, que mostram que a fome voltou a aumentar no país. De acordo com a FAO, 37,5 milhões de pessoas viviam uma situação de insegurança alimentar moderada no país no período entre 2014 e 2016. Mas entre 2017-2019, esse número subiu para 43,1 milhões. Percentualmente o número subiu de 18,3% para 20,6%.
      Segundo o relatório da Oxfam, que usa metodologia diferente dos dados da FAO, o número de pessoas em situação de fome no Brasil em 2018 tinha chegado a 5,2 milhões, devido a um aumento acentuado nas taxas de pobreza e desemprego e a cortes nos orçamentos para agricultura e proteção social. O relatório aponta ainda, como causa do aumento do número de famintos, os cortes no programa Bolsa Família e, desde 2019, o "desmantelamento gradual" de políticas e estruturas destinadas a combater a pobreza, como o Consea. Segundo o estudo, o advento da pandemia da covi-19 somou-se a essa combinação de elementos já colocados, aumentando rapidamente a pobreza e a fome em todo o pais.
     A recessão provocada pela pandemia, obviamente agravou muito o problema. O trabalho da Oxfam aponta também, como fator de piora da situação, o atraso do governo na distribuição da ajuda prometida aos trabalhadores e empresas, através do Programa de Apoio Emergencial ao Emprego (PESE). Para a ONG grandes empresas tiveram mais acessos aos benefícios do que os trabalhadores, ou as micro e pequenas empresas. 
     A pobreza e a fome incidem de forma diferenciada na sociedade. São as crianças, os idosos e as mulheres, os maiores atingidos. O grau de incidência de pobreza e da fome numa determinada sociedade diz muito, inclusive, sobre a mesma. Se há um grande número de pessoas que passam fome, por exemplo, num país que tenha condições razoáveis de produção industrial e agrícola, há nesse fato praticamente uma “denúncia” de que tipo de sociedade se trata. O Brasil, por exemplo, mantém o mencionado contingente de famintos, mesmo ocupando a posição de 2º maior produtor de alimentos do planeta, e com potencial para, em pouco tempo, se tornar o 1º nesse ranking. O fato de um país com recursos abundantes como o Brasil, ter uma parcela expressiva da população que passa fome, revela a face cruel e atrasada da burguesia brasileira.
     Segundo a publicação “Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira”, do IBGE, em 2018 57,6% dos rendimentos domiciliares per capita observados ainda eram iguais ou inferiores ao valor do salário mínimo vigente nesse mesmo ano. Isso significa que mais da metade das pessoas possuíam rendimento domiciliar per capita de até R$ 954,00 (um salário mínimo).
     Segundo a Pnad/2019, há área extensa do Brasil (regiões Nordeste, Norte, e Centro-Oeste), na qual o rendimento domiciliar per capita está abaixo do salário mínimo. Ou seja, além do rendimento per capita no Brasil ser muito baixo, as diferenças regionais também são muito grandes. Estes dados, de certa forma explicam também porque o número de pessoas elegíveis para receber o auxílio emergencial (coronavoucher) chegou a 79,9 milhões. Com o agravamento do desemprego, que simplesmente explodiu a partir da pandemia, o número de famintos no país certamente aumentou muito.
     O programa de combate à fome, como se sabe, é complexo e exige rigoroso trabalho de engenharia social. Implica em financiamento para a agricultura familiar, merenda escolar, atualização permanente de base de dados e cadastros, e assim sucessivamente. Isso implica em trabalho diuturno e perseverante. Num cenário como o atual, seria fundamental um plano ousado e vigoroso para enfrentar a fome a pobreza de boa parte da população brasileira. Mas o pior governo da história do Brasil, ao invés disso, se prepara para vender tudo “o que for possível”.

                                                                                          *Economista 15.07.20 

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