quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Pano de fundo do assassinato do general iraniano e crise no Oriente Médio


                                                                                     *José Álvaro de Lima Cardoso
     São várias as interpretações para a ação do governo dos EUA, que no dia 3 de janeiro assassinou o general iraniano Qasem Soleimani, através de um ataque de drones no Aeroporto Internacional de Bagdá. O importante líder militar, chefe da Força Quds (tropa de elite da Guarda Revolucionária Iraniano), foi morto, segundo consta, com o auxílio dos serviços de inteligência de Israel, que repassou dados fundamentais para a ação. Em seguida, em 7 de janeiro, o governo Iraniano retaliou, atacando instalações das bases norte-americanas de Ain Al-Asad e Arbil, localizadas no Iraque.
     Não se sabe com precisão, mas aparentemente o assassinato do general foi uma ação descolada de uma estratégia mais geral, que justificasse ato tão infame. Alguns analistas atribuem a ação aos interesses eleitorais e políticos mais gerais, de Donald Trump, em função das eleições para presidente previstas para este ano nos EUA. Outros avaliam que o objetivo foi desviar a atenção do processo de impeachment que o presidente dos EUA está sofrendo.
     O contexto no Oriente Médio é extremamente complexo, embaralhando elementos geopolíticos, econômicos, militares, religiosos, etc. O Oriente Médio, apesar de abrigar menos de 5% da população do globo, possui 65% das reservas petrolíferas do planeta. Advém desse último fato, em boa parte, a importância econômica e geopolítica da região. Apesar das motivações imediatas (os fatos sempre apresentam mais de uma causa), o mais importante a ser analisado é o contexto geral no qual se insere a ação criminosa do governo norte-americano. O pano de fundo do assassinato do general é a progressiva perda de influência política do imperialismo no Oriente Médio como um todo, o retrocesso político na região, especialmente por parte dos EUA.
     Por tudo que representa, o Irã é o principal obstáculo às políticas do imperialismo na região. E o general era um dos líderes dessa resistência. O Irã saiu da esfera de influência do império há 40 anos, com a revolução de 1979, que demoliu um governo títere dos interesses anglo-americanos. O Xá Reza Pahlevi, deposto pela revolução, havia subido ao poder em 1953 através de um golpe contra Mossadegh, organizado pelos imperialistas. O Irã é um pais muito importante na região, o mais populoso (81 milhões) e o mais industrializado. Um país com esse peso e com política soberana, é tudo que os EUA menos desejam para a região.  
     Um episódio fundamental, marco na história da região, foi a guerra da Síria, entre 2011/2019. O imperialismo como um todo, liderado pelos EUA, através da chamada guerra por procuração (utilizando mercenários), procurou por todos os meios derrotar o governo Sírio, que é nacionalista, com o velho e esfarrapado pretexto de “restauração da democracia” no país. Claro que a guerra nada tinha a ver com democracia, foi mais uma ação do consórcio imperialista, a fim de preservar seus interesses. O governo dos EUA armou militarmente a oposição ao governo Sírio, dentro e fora do país e vendeu a ideia de que havia uma guerra civil, com o povo revoltado contra o governo. Mas, ao que se sabe, a maioria da população apoia o governo e não aderiu à luta armada, que foi empreendida fundamentalmente por mercenários contratados.
     Em dezembro de 2018 o governo dos EUA retirou parcialmente suas tropas da Síria (aproximadamente dois mil militares). O que, na prática, foi o reconhecimento da derrota, especialmente pelo fato de que o objetivo principal da investida era derrubar o governo Bashar al-Assad e colocar um governo fantoche no lugar (como fizeram no Brasil por outros meios). Em outubro de 2019 os Estados Unidos anunciaram a retirada total das suas tropas da Síria.
     A derrota na Síria (não apenas dos EUA, mas do imperialismo como um todo, incluindo França e Inglaterra), levou a crise do imperialismo na região a um ponto muito alto. A derrota, que foi um marco fundamental na crise, contou com o auxílio luxuoso de Rússia e China, que aportaram armas, tecnologia, suprimentos e assessoria. Principalmente após a derrota na Síria, ficou evidente que, se não houverem fatos importantes na política para a região, o imperialismo arrisca perder o controle de todo o Oriente Médio. Com essa derrota criou-se uma situação extremamente perigosa para a política imperialista. Na própria Arábia saudita, principal aliado dos EUA na região, vigora uma crise interna bastante forte, tendo havido, inclusive, um golpe de Estado em 2017 (possivelmente com a participação dos EUA, já que o pais é o principal aliado do império no Oriente Médio).
     A perda de influência dos EUA no Oriente Médio aparenta ser o pano de fundo do assassinato do general Soleimani. Qualquer situação mais extrema, que implique em mobilização das massas, pode levar a uma conflagração geral na região. No contexto desse conflito a posição do Irã é extremamente influente. A população xiita – que no caso do Irã alcança 93% da população – está espalhada por praticamente todos os países do Oriente Médio. Se calcula, por exemplo, que 65% dos muçulmanos no Iraque são xiitas, sendo apenas 35% sunitas. Um eventual levante geral contra o imperialismo, ademais, pode unificar xiitas e sunitas. Disso tudo sabem os estrategistas dos países imperialistas, que dominam a região há séculos. Vem daí, também, ações desesperadas como o assassinato do general.
     A rejeição ao imperialismo na região não é obra do espírito santo. Só no período mais recente, há cálculos de que, desde a invasão do Iraque (em março de 2003), como resultado dos conflitos provocados, já morreram mais de 3 milhões de pessoas. O general Soleimani era um símbolo regional de resistência às invasões e conspirações dos países ricos, em busca de petróleo, dinheiro e hegemonia na região. As mortes no Oriente Médio são um custo previsível da interferência imperialista, que está interessado exclusivamente nos lucros de suas empresas e na ampliação de seu poder estratégico.
     Uma das consequências imediatas dessa crise recente no Oriente Médio é o agravamento da crise da economia mundial. Não só pela elevação do preço do petróleo, que já ocorreu em parte, mas pela própria situação econômica de conjunto. Na lista dos mais graves problemas da situação internacional, certamente o confronto EUA X Irã aparece como um dos mais importantes. O assassinato do general de certa forma foi um tiro no pé, na medida em que provocou enorme radicalização política em todo o Oriente Médio. Foi esse fator que levou Trump a recuar, evitando uma escalada da guerra no Oriente Médio. Mais do que o normal, vale a máxima de que uma guerra na região é fácil de iniciar, mas ninguém pode prever como terminaria.
     As tropas americanas na região, inclusive, ficaram numa situação extremamente difícil. No dia 05.01, após dois dias do assassinato, o parlamento iraquiano exigiu a saída das tropas norte-americanas do país (cerca de 6.000 soldados que vivem na chamada Zona Verde).
      Ao recuar de um confronto imediato, os EUA anunciaram o arrocho no bloqueio econômico feito pelos países ricos ao Irã, que é uma política verdadeiramente criminosa. Como fazem com Cuba desde 1960, como reação às medidas tomadas pelo governo revolucionário[1] e com a Venezuela, como retaliação a um governo independente (e com muito petróleo) na América do Sul. A política de embargo econômico traz grandes prejuízos ao país vitimado, pela falta de investimentos, atingindo em cheio a indústria, por exemplo. É também uma política genocida, que faz escassear alimentos, remédios e outros suprimentos essenciais, afetando diretamente segmentos mais frágeis da população (crianças, idosos, pobres, etc.). Para nós brasileiros, que nunca sofremos bloqueio econômico, é quase impossível avaliar o sofrimento e a resiliência do povo cubano, por exemplo, decorrente de quase 60 anos de bloqueio.
     A abordagem das notícias veiculadas no Brasil, que são vergonhosamente alinhadas com a versão norte-americana, vai tornando banal os EUA manterem tropas de ocupação em todo o Oriente Médio. Qual a normalidade do país mais armado do mundo[2] manter 80.000 militares em 22 bases espalhadas pelo Oriente Médio? Qual seria o objetivo de manter porta aviões-aviões nucleares, destroieres, cruzadores e submarinos na região mais rica em petróleo no mundo?
     O império americano, assim como os demais países imperialistas, encobre tudo isso com a alegada luta pela “democracia”. Mantêm tais aparatos militares na região, supostamente para garantir a democracia, já que os “bárbaros” do Oriente Médio não respeitam as liberdades democráticas. Invasões, bombardeamentos, financiamento de mercenários, etc, teriam como objetivo garantir a democracia na região. Há um gasto colossal para emplacar essa visão na mídia, redes sociais, arte e cultura, e assim por diante. Por exemplo, nos primeiros quinze dias do ano, o Twitter suspendeu dezenas de contas da Venezuela, Irã e Síria. Os banidos da plataforma incluíam chefes de Estado, inúmeras instituições estatais, veículos de comunicação e muitas pessoas que nada tinham a ver com os governos de seus países.
     No atual contexto de crise mundial, que explica em parte a ação dos EUA no Irã, um dos grandes riscos é de abastecimento do petróleo, pela importância do Irã na sua produção (o Irã é o 5º maior produtor de petróleo do mundo, atrás de EUA, Arábia Saudita, Rússia e Canadá) e pelo grau de sensibilidade deste mercado às crises políticas e militares. Após a reação do Irã ao atentado, com o bombardeamento de bases militares dos EUA no Iraque, Donald Trump declarou que os EUA não precisam mais do petróleo do Oriente Médio, porque seriam autossuficientes na produção. Mas este é um argumento falso, para dizer o mínimo.
     Petróleo não se resume ao problema do fornecimento aos países importadores. Com a primeira crise do petróleo, em 1993 e 1994, os países imperialistas começaram a operar para reduzir sua dependência do petróleo, especialmente das reservas do Oriente Médio. A Inglaterra, por exemplo, já naquele período, ampliou os investimentos do petróleo no Mar do Norte, reduzindo sua dependência em relação aos países do Oriente Médio. Nos últimos anos os EUA aumentaram muito a produção de petróleo, principalmente em função da tecnologia do fracking, método que implica na injeção de água em reservas subterrâneas, o que possibilita a extração de xisto, um tipo de hidrocarboneto localizado entre rochas em grandes profundidades.
     O mercado do petróleo, um dos mais importantes do mundo, é controlado pelos países imperialistas e suas gigantescas empresas de petróleo. Se o imperialismo perdesse o controle sobre o mercado de petróleo, o retrocesso econômico e a crise capitalista seriam acelerados. Uma guerra entre EUA e Irã tenderia a se espalhar por todo o Oriente Médio e levar os preços globais do petróleo a dispararem, levando a recessão, como já ocorreu nas várias conflagrações anteriores, em áreas estratégicas na oferta de petróleo.

                                                                                                         *Economista.
                                                                                                                                15.01.         


[1] Em 19 de outubro de 1960, quase dois anos após a revolução, os Estados Unidos embargaram as exportações para Cuba, com exceção de alimentos e remédios. O bloqueio foi uma retaliação à estatização das refinarias de petróleo, de propriedade norte-americana sem indenização. Em de fevereiro de 1962, o embargo foi estendido para incluir quase todas as exportações.

[2] O orçamento militar dos EUA para 2020 é de 750 bilhões de dólares, os maiores gastos anuais da história em armas nos EUA e o maior orçamento do mundo, disparado.   

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