*José
Álvaro de Lima Cardoso
São várias as interpretações para a ação do
governo dos EUA, que no dia 3 de janeiro assassinou o general iraniano Qasem
Soleimani, através de um ataque de drones no Aeroporto Internacional de Bagdá. O
importante líder militar, chefe da Força Quds (tropa de elite da Guarda
Revolucionária Iraniano), foi morto, segundo consta, com o auxílio dos serviços
de inteligência de Israel, que repassou dados fundamentais para a ação. Em
seguida, em 7 de janeiro, o governo Iraniano retaliou, atacando instalações das
bases norte-americanas de Ain Al-Asad e Arbil, localizadas no Iraque.
Não se sabe com precisão, mas aparentemente o assassinato do general foi
uma ação descolada de uma estratégia mais geral, que justificasse ato tão infame.
Alguns analistas atribuem a ação aos interesses eleitorais e políticos mais
gerais, de Donald Trump, em função das eleições para presidente previstas para
este ano nos EUA. Outros avaliam que o objetivo foi desviar a atenção do
processo de impeachment que o presidente dos EUA está sofrendo.
O contexto no Oriente Médio é extremamente complexo, embaralhando
elementos geopolíticos, econômicos, militares, religiosos, etc. O Oriente
Médio, apesar de abrigar menos de 5% da população do globo, possui 65% das
reservas petrolíferas do planeta. Advém desse último fato, em boa parte, a
importância econômica e geopolítica da região. Apesar das motivações imediatas
(os fatos sempre apresentam mais de uma causa), o mais importante a ser
analisado é o contexto geral no qual se insere a ação criminosa do governo
norte-americano. O pano de fundo do assassinato do general é a progressiva
perda de influência política do imperialismo no Oriente Médio como um todo, o
retrocesso político na região, especialmente por parte dos EUA.
Por tudo que representa, o Irã é o principal obstáculo às políticas do
imperialismo na região. E o general era um dos líderes dessa resistência. O Irã
saiu da esfera de influência do império há 40 anos, com a revolução de 1979,
que demoliu um governo títere dos interesses anglo-americanos. O Xá Reza
Pahlevi, deposto pela revolução, havia subido ao poder em 1953 através de um golpe
contra Mossadegh, organizado pelos imperialistas. O Irã é um pais muito
importante na região, o mais populoso (81 milhões) e o mais industrializado. Um
país com esse peso e com política soberana, é tudo que os EUA menos desejam para
a região.
Um episódio fundamental, marco na história da região, foi a guerra da
Síria, entre 2011/2019. O imperialismo como um todo, liderado pelos EUA, através
da chamada guerra por procuração (utilizando mercenários), procurou por todos
os meios derrotar o governo Sírio, que é nacionalista, com o velho e esfarrapado
pretexto de “restauração da democracia” no país. Claro que a guerra nada tinha
a ver com democracia, foi mais uma ação do consórcio imperialista, a fim de
preservar seus interesses. O governo dos EUA armou militarmente a oposição ao
governo Sírio, dentro e fora do país e vendeu a ideia de que havia uma guerra
civil, com o povo revoltado contra o governo. Mas, ao que se sabe, a maioria da
população apoia o governo e não aderiu à luta armada, que foi empreendida fundamentalmente
por mercenários contratados.
Em dezembro de 2018 o governo dos EUA retirou parcialmente suas tropas
da Síria (aproximadamente dois mil militares). O que, na prática, foi o
reconhecimento da derrota, especialmente pelo fato de que o objetivo principal
da investida era derrubar o governo Bashar al-Assad e colocar um governo
fantoche no lugar (como fizeram no Brasil por outros meios). Em outubro de 2019
os Estados Unidos anunciaram a retirada total das suas tropas da Síria.
A derrota na Síria (não apenas dos EUA, mas do imperialismo como um
todo, incluindo França e Inglaterra), levou a crise do imperialismo na região a
um ponto muito alto. A derrota, que foi um marco fundamental na crise, contou
com o auxílio luxuoso de Rússia e China, que aportaram armas, tecnologia,
suprimentos e assessoria. Principalmente após a derrota na Síria, ficou
evidente que, se não houverem fatos importantes na política para a região, o
imperialismo arrisca perder o controle de todo o Oriente Médio. Com essa
derrota criou-se uma situação extremamente perigosa para a política imperialista.
Na própria Arábia saudita, principal aliado dos EUA na região, vigora uma crise
interna bastante forte, tendo havido, inclusive, um golpe de Estado em 2017
(possivelmente com a participação dos EUA, já que o pais é o principal aliado
do império no Oriente Médio).
A perda de influência dos EUA no Oriente Médio aparenta ser o pano de
fundo do assassinato do general Soleimani. Qualquer situação mais extrema, que
implique em mobilização das massas, pode levar a uma conflagração geral na
região. No contexto desse conflito a posição do Irã é extremamente influente. A
população xiita – que no caso do Irã alcança 93% da população – está espalhada por
praticamente todos os países do Oriente Médio. Se calcula, por exemplo, que 65%
dos muçulmanos no Iraque são xiitas,
sendo apenas 35% sunitas. Um eventual levante geral contra o
imperialismo, ademais, pode unificar xiitas e sunitas. Disso tudo sabem os
estrategistas dos países imperialistas, que dominam a região há séculos. Vem
daí, também, ações desesperadas como o assassinato do general.
A rejeição ao imperialismo na região não é obra do espírito santo. Só no
período mais recente, há cálculos de que, desde a invasão do Iraque (em março
de 2003), como resultado dos conflitos provocados, já morreram mais de 3
milhões de pessoas. O general Soleimani era um símbolo regional de resistência
às invasões e conspirações dos países ricos, em busca de petróleo, dinheiro e
hegemonia na região. As mortes no Oriente Médio são um custo previsível da
interferência imperialista, que está interessado exclusivamente nos lucros de
suas empresas e na ampliação de seu poder estratégico.
Uma das consequências imediatas dessa crise recente no Oriente Médio é o
agravamento da crise da economia mundial. Não só pela elevação do preço do
petróleo, que já ocorreu em parte, mas pela própria situação econômica de conjunto.
Na lista dos mais graves problemas da situação internacional, certamente o confronto
EUA X Irã aparece como um dos mais importantes. O assassinato do general de
certa forma foi um tiro no pé, na medida em que provocou enorme radicalização política
em todo o Oriente Médio. Foi esse fator que levou Trump a recuar, evitando uma
escalada da guerra no Oriente Médio. Mais do que o normal, vale a máxima de que
uma guerra na região é fácil de iniciar, mas ninguém pode prever como
terminaria.
As tropas americanas na região, inclusive, ficaram numa situação extremamente
difícil. No dia 05.01, após dois dias do assassinato, o parlamento iraquiano
exigiu a saída das tropas norte-americanas do país (cerca de 6.000 soldados que
vivem na chamada Zona Verde).
Ao recuar de um confronto imediato, os EUA anunciaram o arrocho no
bloqueio econômico feito pelos países ricos ao Irã, que é uma política
verdadeiramente criminosa. Como fazem com Cuba desde 1960, como reação às
medidas tomadas pelo governo revolucionário[1]
e com a Venezuela, como retaliação a um governo independente (e com muito
petróleo) na América do Sul. A política de embargo econômico traz grandes
prejuízos ao país vitimado, pela falta de investimentos, atingindo em cheio a
indústria, por exemplo. É também uma política genocida, que faz escassear
alimentos, remédios e outros suprimentos essenciais, afetando diretamente
segmentos mais frágeis da população (crianças, idosos, pobres, etc.). Para nós brasileiros,
que nunca sofremos bloqueio econômico, é quase impossível avaliar o sofrimento e
a resiliência do povo cubano, por exemplo, decorrente de quase 60 anos de bloqueio.
A abordagem das notícias veiculadas no Brasil, que são vergonhosamente alinhadas
com a versão norte-americana, vai tornando banal os EUA manterem tropas de
ocupação em todo o Oriente Médio. Qual a normalidade do país mais armado do
mundo[2]
manter 80.000 militares em 22 bases espalhadas pelo Oriente Médio? Qual seria o
objetivo de manter porta aviões-aviões nucleares, destroieres, cruzadores e
submarinos na região mais rica em petróleo no mundo?
O império americano, assim como os demais países imperialistas, encobre
tudo isso com a alegada luta pela “democracia”. Mantêm tais aparatos militares
na região, supostamente para garantir a democracia, já que os “bárbaros” do
Oriente Médio não respeitam as liberdades democráticas. Invasões,
bombardeamentos, financiamento de mercenários, etc, teriam como objetivo
garantir a democracia na região. Há um gasto colossal para emplacar essa visão na
mídia, redes sociais, arte e cultura, e assim por diante. Por exemplo, nos
primeiros quinze dias do ano, o Twitter suspendeu dezenas de contas da Venezuela,
Irã e Síria. Os banidos da plataforma incluíam chefes de Estado, inúmeras instituições
estatais, veículos de comunicação e muitas pessoas que nada tinham a ver com os
governos de seus países.
No
atual contexto de crise mundial, que explica em parte a ação dos EUA no Irã, um
dos grandes riscos é de abastecimento do petróleo, pela importância do Irã na sua
produção (o Irã é o 5º maior produtor de petróleo do mundo, atrás de EUA,
Arábia Saudita, Rússia e Canadá) e pelo grau de sensibilidade deste mercado às
crises políticas e militares. Após a reação do Irã ao atentado, com o
bombardeamento de bases militares dos EUA no Iraque, Donald Trump declarou que
os EUA não precisam mais do petróleo do Oriente Médio, porque seriam autossuficientes
na produção. Mas este é um argumento falso, para dizer o mínimo.
Petróleo não se resume ao problema do fornecimento aos países importadores.
Com a primeira crise do petróleo, em 1993 e 1994, os países imperialistas
começaram a operar para reduzir sua dependência do petróleo, especialmente das
reservas do Oriente Médio. A Inglaterra, por exemplo, já naquele período, ampliou
os investimentos do petróleo no Mar do Norte, reduzindo sua dependência em
relação aos países do Oriente Médio. Nos últimos anos os EUA aumentaram muito a
produção de petróleo, principalmente em função da tecnologia do fracking, método
que implica na injeção de água em reservas subterrâneas, o que possibilita a
extração de xisto, um tipo de hidrocarboneto localizado entre rochas em grandes
profundidades.
O mercado do petróleo, um dos mais importantes do mundo, é controlado
pelos países imperialistas e suas gigantescas empresas de petróleo. Se o
imperialismo perdesse o controle sobre o mercado de petróleo, o retrocesso
econômico e a crise capitalista seriam acelerados. Uma guerra entre EUA e Irã tenderia
a se espalhar por todo o Oriente Médio e levar os preços globais do petróleo a dispararem,
levando a recessão, como já ocorreu nas várias conflagrações anteriores, em
áreas estratégicas na oferta de petróleo.
*Economista.
15.01.
[1] Em 19 de
outubro de 1960, quase dois anos após a revolução, os Estados Unidos embargaram
as exportações para Cuba, com exceção de alimentos e remédios. O bloqueio foi
uma retaliação à estatização das refinarias de petróleo, de propriedade
norte-americana sem indenização. Em de fevereiro de 1962, o embargo foi
estendido para incluir quase todas as exportações.
[2] O orçamento
militar dos EUA para 2020 é de 750 bilhões de dólares, os maiores gastos anuais
da história em armas nos EUA e o maior orçamento do mundo, disparado.
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