por Luis Nassif, em seu blog
Em meados dos anos 2.000, subitamente o Olimpo da mídia passou a ser
invadido por corpos estranhos, dinossauros de direita que se supunha
extintos desde o final da Guerra Fria, com uma linguagem vociferante,
bélica, atacando outros jornalistas, pessoas públicas, partidos
políticos, com um grau de agressividade inédito. Inaugurava-se o que
batizei, na época, de jornalismo de esgoto.
O grande movimento começou por volta de 2005, coincidindo com a
montagem do cartel midiático liderado por Roberto Civita, o cappo da
Editora Abril.
***
Inspirada no australiano-americano Rupert Murdoch, a estratégia
adotada consistia em juntar todos os grandes grupos de mídia em uma
guerra visando ganhar influência para enfrentar os grupos que surgiam no
bojo das novas tecnologias.
Desde seus primórdios, a indústria de comunicação de massa ganhou a
capacidade de criar um universo virtual, com enorme influência sobre o
universo real. Personalidades construídas pela mídia são agentes
poderosos de influência em todos os campos. Ao contrário, as vítimas de
ataques sofrem consequências terríveis em sua vida pessoal,
profissional.
Nas democracias imperfeitas — como é o caso da brasileira –, com
enorme concentração de poder, trata-se de um poder tão ilimitado que uma
das “punições” mais graves impostas a recalcitrantes é a “lista negra”,
a proibição da citação de seu nome em qualquer veículo. O sujeito
“morre”, desaparece.
Em um modelo competitivo de mídia, essas idiossincrasias são superáveis, permitindo a diversificação de pensamento.
De fato, o fim da guerra fria – no caso brasileiro, o fim da ditadura
e o pacto das diretas – produziu um universo relativamente
diversificado de personalidades, entre jornalistas, intelectuais,
empresários, artistas e celebridades em geral, bom para o pluralismo e
para o jornalismo, ruim para as estratégias políticas da mídia.
Montado o pacto, o primeiro passo foi homogeneizar o universo midiático, acabando com o contraditório.
***
Nos Estados Unidos, a estratégia de Rupert Murdoch foi criar um
inimigo externo, que substituísse os antigos personagens da Guerra Fria.
Os atentados às Torres Gemeas vieram a calhar. E calar eventuais vozes
independentes, de jornalistas, com ataques desqualificadores, para
impedir o exercício do contraponto.
A estratégia brasileira imitou esse modelo, criando fantasmas
bolivarianos, ameaças ficcionais à democracia e ataques
desqualificadores aos críticos.
O fuzilamento de recalcitrantes baseou-se em um modelo retratado no
filme “The Crusader” que, no Brasil, recebeu o nome de “O Poder da
Mídia” – dirigido por Bryan Goeres, tendo no elenco, entre outros,
Andrew McCarthy e Michael York. É de 2004.
Narra a história de uma disputa no mercado de telecomunicações, no
qual o dono da rede de televisão é cooptado por um dos lados. A
estratégia consistiu em pegar um repórter medíocre e turbiná-lo com
vários dossiês até transformá-lo em uma celebridade. Tornando-se
celebridade, o novo poder era utilizado nas manobras do grupo.
Por aqui o modelo foi testado com um colunista de temas culturais,
Diogo Mainardi. Sem conhecimentos maiores do mundo político e
empresarial, foi alimentado com dossiês, liberdade para ofender, agredir
e, adicionalmente, tornar-se protagonista nas disputas do banqueiro
Daniel Dantas em torno das teles brasileiras.
Lançado seu livro, os jornais seguiram o script de “construir” uma
reputação da noite para o dia e alçá-lo à condição de celebridade. O
ápice foi uma resenha do Estadão comparando-o a Carlos Lacerda e um perfil na Veja tratando-o como “o guru do Leblon”. Tornaram-se peças clássicas do ridículo desses tempos de trevas.
Foi usado e jogado fora, quando não mais necessário. Seus ataques a
vários jornalistas serviram de álibi para as organizações fazerem o
expurgo e montarem a grande noite de São Bartolomeu da mídia.
***
A segunda parte do jogo foi a reconstrução do Olimpo midiático com
uma nova fauna, que se dispusesse a preencher os requisitos exigidos, de
total adesão à estratégia do cartel. Não bastava apenas a crítica
contra o governo e o partido adversário. Tinha que se alinhar com o
preconceito, a intolerância, expelir ódio por todos os poros, tratar
cada pessoa que ousasse pensar diferente como inimigo a ser destruído.
Vários candidatos se apresentaram para atender à nova demanda. De
repente, doces produtores musicais, esquecidos no mundo midiático,
transformaram-se em colunistas políticos vociferantes e voltaram a
ganhar os holofotes da mídia; intelectuais sem peso no seu meio
tornaram-se fontes em permanente disponibilidade repetindo os mesmos
mantras; humoristas ganharam programas especiais e roqueiros espaço em
troca das catilinárias. Dessa fauna caricata se exigia a lealdade
absoluta, a capacidade de exercitar a palavra “canalha” para se referir a
adversários e nenhum pudor para repetir os mantras ideológicos das
senhoras de Santana.
***
Mas a parte que interessa agora – para entender a ação que me move o
diretor da Globo Ali Kamel – foi o papel desempenhado por diretores de
redação com ambições intelectuais.
Com autorização para matar e para criar a nova elite de celebridades
midiáticas, ambicionaram não apenas o poder midiático, mas julgaram que
eles próprios poderiam cavalgar a onda e ocupar o posto de liderança da
nova intelectualidade que a mídia pretendia forjar a golpes de machado.
Eles construíam o novo Olimpo e se candidatavam ao posto de profetas,
assumindo outro Olimpo – o do mundo intelectual – que estava a léguas de
distância de sua capacidade.
Montaram um acordo com a editora Record e, de repente, todos se
tornaram pensadores e escritores. Cada lançamento recebia cobertura
intensiva de todos os veículos do cartel, páginas na Veja e na Época,
resenhas na Folha, Globo e Estadão, entrevistas na Globonews e no
programa do Jô.
Durante algum tempo, o mundo intelectual tupiniquim testemunhou um
dos capítulos mais vexaminosos de auto-louvação, uma troca de elogios e
de favores indecente, sem limite, que empurrou a grande mídia brasileira
para o provincianismo mais rotundo.
Diretor da Veja, Mário Sabino lançou um romance que mereceu uma
crítica louvaminhas na própria Veja, escrita por um seu subordinado e
campanhas de outdoor em ônibus bancada pela própria Record – que
disseminava a lenda de que o livro estaria sendo recebido de forma
consagradora em vários países. O livro de Kamel foi saudado pela
revista Época, do mesmo grupo Globo, como um dos dez mais importantes da
década.
Coube à blogosfera desmascarar aquele ridículo atroz, denunciando a manipulação da lista dos livros mais vendidos de Veja,
por Sabino, para que sua obra prima pudesse entrar. E revelando total
ausência das supostas edições estrangeiras de Sabino na mais afamada e
global livraria virtual, a Amazon.
Na ação que me move, um dos pontos realçados por Kamel foi o fato de
ter colocado em meu blog um vídeo com a música “O cordão dos puxa
sacos”, para mostrar o que pensava da lista dos livros mais relevantes
da década da revista Época.
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Graças à democratização trazida pelas redes sociais, os
neo-intelectuais não resistiram à exposição de suas fraquezas. Voltaram
para o limbo da subcultura midiática.
Kamel conformou-se com seu papel de todo-poderoso da Globo, mas com
atuação restrita aos bastidores, onde seus subordinados são obrigados a
aceitar seu brilho e suas orientações; Sabino desistiu da carreira de
candidato ao Nobel de literatura.
Derrotados no campo jornalístico, no mano-a-mano das disputas
intelectuais, recorreram ao poder das suas empresas para tentar vencer
no tapetão das ações judiciais, tanto Kamel quanto Sabino, Mainardi,
Eurípides.
Ao esconder-se nas barras da saia das suas corporações, passaram a
ideia clara sobre a dimensão dos homens públicos que eram, quando
despidos das armaduras corporativas.
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