*José Álvaro de Lima Cardoso
O serviço público de
saúde pode ser considerado um divisor de águas em qualquer país, em relação à
forma como a população é tratada pela sua classe dominante. O serviço de saúde,
depois da segurança alimentar, que está à disposição da população de
determinado país, é um termômetro da força de uma população. O acesso à
medicina de qualidade, assim como à alimentação, revela como a maioria da
população é tratada por quem detém o poder do Dinheiro.
Para ilustrar, cito uma
passagem sobre o sistema de saúde dos EUA, que é considerado uma “porcaria”
universal: no documentário Sicko, do documentarista Michael Moore, há uma
passagem na qual é relatado um acidente em que o cidadão perde dois dedos numa
serra elétrica (médio e anular). A família recolhe os dedos e leva o ferido ao
hospital. No local o paciente fica sabendo que a recolocação cirúrgica de um
dedo, custará 12.000 dólares e, do outro, 60.000 dólares. O paciente e sua
família, sem recursos para custear a cirurgia dos dois dedos, escolhe recolocar
o órgão, cujo serviço médico sairá mais barato. Essa passagem ilustra a forma
com que o governo dos EUA trata a sua população. Os cartéis da saúde, empresas
gigantes que têm grande influência sobre os políticos, fazem o que querem com o
povo. No país mais rico da terra, onde sobra tecnologia médica, a maioria da
população não tem acesso à serviços decentes e básicos de medicina.
Algo semelhante ocorre no
Brasil. É possível medir o quanto o governo Bolsonaro é inimigo do povo,
através da posição que tem em relação à saúde. Bolsonaro e seus ministros da
saúde (cada um pior do que o outro), praticaram durante a pandemia uma política
literalmente genocida, ou seja, desenvolveram ações para matar os mais fracos
(velhos, pessoas com comorbidades, pobres, etc.). Não se trata de uma impressão,
em alguns momentos eles praticamente confessaram isso. O relatório da CPI da
Covid-19, pelo menos irá documentar para a história esses acontecimentos.
Segundo o IBGE existe no
país um médico para cada 470 habitantes, mas nas regiões Norte e Nordeste,
chega a 1 médico para cada 953 e 750 brasileiros, respectivamente. Conforme
dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) há aproximadamente 17 médicos para
cada 10 mil habitantes no Brasil, enquanto na Europa esse número chega a 33 (é
o dobro).
Os usuários do sistema
público de saúde reclamam do longo tempo de espera para ser atendido no SUS
(Sistema Único de Saúde), razão pela qual uma parte deles (aqueles que dispõem
de recursos), recorrem ao sistema privado para resolver o seu problema. Dependendo
do tipo de serviço que o paciente necessita, de procedimento de maior ou menor complexidade,
e dependendo do local onde resida, o tempo de espera pode significar, por
exemplo, a sua morte. Uma das queixas mais
recorrentes nas pesquisas sobre saúde no Brasil é a da falta de leitos. Vimos
recentemente que, a falta de leitos de UTI, foi um dos sérios problemas no
ápice da pandemia de Covid-19.
Um outro problema da saúde
pública é o sub financiamento do SUS, que se agravou sobremaneira após o golpe
de 2016. Desde que a Emenda Constitucional 95, que congelou os recursos da
saúde por 20 anos, em termos reais, foi aprovada, em dezembro de 2016, o
orçamento para a Saúde tem diminuído cada vez mais. Se em 2019 o governo
tivesse aplicado o mesmo patamar que aplicou em 2017 (15% da receita corrente
líquida de cada ano), a Saúde teria um orçamento de cerca de R$ 142,8 bilhões,
e não R$ 122,6 bilhões aplicados. Ou seja, uma redução de R$ 20,19 bilhões nos
recursos em saúde, enquanto a população cresce e envelhece.
A pandemia apenas evidenciou
ainda mais as mazelas da saúde pública, em função da sobrecarga do sistema, que
teve que absorver um grande número de pacientes internados graves. Além da superlotação
dos hospitais o Brasil padece da falta de insumos hospitalares, desde a
dificuldade para adquirir simples luvas de procedimentos, até anestésicos e
outros medicamentos utilizados na sedação de pacientes.
Nesse quadro extremamente
difícil, os planos de saúde
no Brasil, tanto para as empresas, quanto para a classe trabalhadora, são
bastante valorizados. Em regra, em função dos baixos salários, o plano de saúde
é o benefício mais importante ofertado
pelo empregador, em função da essencialidade do serviço de saúde e também do
custo do plano no conjunto de despesas dos trabalhadores. Esta é uma tendência em
todos os países onde o serviço público de saúde deixa a desejar (ou seja, na
maioria dos países). Ao mesmo tempo, os planos são um dos elementos de
competitividade entre as organizações, sendo extremamente valorizados como
estratégia de retenção e
atração de talentos, influenciando também na motivação e no engajamento dos
trabalhadores.
Em função da prolongada crise econômica brasileira,
que vai para o oitavo ano (teremos mais uma década perdida), e da onda de
retiradas de direitos, que o golpe de 2016 provocou, alguns planos de saúde
públicos, especialmente ligados aos municípios, vêm tentando ou simplesmente
acabar com o plano, ou mudar
a sua forma de custeio, aumentando dramaticamente o peso para os trabalhadores.
Em algumas propostas de prefeituras, o custeio deixaria de ser financiado por um
percentual de contribuição sobre cada salário para ser uma mensalidade em
função da faixa de idade, o que afetará aqueles que mais precisam: pessoas mais
velhas e com os salários inferiores.
Algumas prefeituras em Santa Catarina estão propondo a alteração do
plano de custeio, passando-se do modelo em que cada trabalhador ou trabalhadora
participa com percentual de contribuição em relação ao seu salário para um
modelo de mensalidade por faixa etária. Geralmente o financiamento dos planos
municipais se dá através de uma contribuição
percentual dos salários de cada real ou potencial participante (servidores
públicos, comissionados, ACTS, dependentes, pensionistas).
Essa mudança do custeio do Plano de Saúde, da forma de “contribuição”
(como percentual proporcional do salário), para “mensalidade”, que inclusive
muda conforma a idade, obviamente penaliza mais os mais velhos e os que ganham
menos. É uma evidente regressividade no sistema. Nos sistemas nos quais os
beneficiários pagam valores de acordo com a cobertura contratada de serviços e
com o salário que ganham, todos contribuem com um mesmo percentual dos
salários, porém, aqueles que ganham mais contribuem com uma massa de valor
maior, proporcional ao salário ganho e independentemente da idade que tenha.
Esse modelo independe de idade, e pessoas de qualquer idade podem fazer uso dos
serviços.
A possibilidade de poder contar com um plano que barateie os custos com
a saúde é extremamente importante para os servidores (as), especialmente para
quem recebe os salários menores. O
índice oficial de inflação se encontra em torno de 10% nos últimos 12 meses,
porém a inflação de alimentos, que tem grande peso no orçamento da maioria dos
servidores, se encontra em um patamar muito mais elevado, possivelmente próximo
aos 30%. Para o servidor, planos
públicos de saúde são uma alternativa intermediária entre as limitações do SUS,
que vem sendo sucateado pelo Governo Federal, e os preços proibitivos da saúde
privada, que são estabelecidos, na prática, pelos grandes monopólios do setor,
que buscam elevados lucros.
Com os salários baixos praticados no
Brasil qualquer elevação mais significativa da inflação coloca uma boa parte da
classe trabalhadora em dificuldades. E a elevação inflacionária atual não é
qualquer uma, ela é forte e concentrada em alimentos, o que compromete
diretamente a renda da maioria da população. A comparação do custo dos planos públicos com o custo dos
privados, como alguns planos públicos têm feito, está errada. Não podemos achar
que estará satisfatório se a mensalidade do plano público ficar mais barata que
o plano privado. Obviamente esta não é a comparação correta. Não tem sentido
comparar custo de planos coletivos com valores de planos individuais, mesmo
porque os planos individuais, em regra, serão mais altos.
A troca de parâmetro de cobrança, de
percentual do salário para uma mensalidade fixa, acaba com um princípio
fundamental de equidade, que é a prática de percentuais iguais para salários
diferentes, de forma a garantir que quem tiver salários maiores, colabora mais
com o financiamento do Plano, ao invés de um valor fixo de contribuição,
indiscriminada e independentemente do salário recebido. É por analogia a esse
princípio que a previdência social dispõe de um Teto Previdenciário. Pelo
princípio do Teto, independentemente do
salário dos contribuintes, o valor do benefício pago pelo INSS irá oscilar
dentro de uma faixa mais estreita. O valor oscila no máximo 5,8 (diferença
entre o salário mínimo e o Teto Previdenciário, atualmente de R$ R$ 6.433,57).
É fundamental adotar medidas que enfrentem o problema do aumento da taxa
de sinistralidade, em qualquer plano. Mas as medidas devem ser estudadas com
calma e dividir o ônus entre os vários atores que sustentam o plano. A
necessidade de fazer ajustes num determinado plano de saúde não significa que
apenas o servidor deva arcar com o ônus do ajuste.
*Economista, 18.10.2021
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