Sensor publica texto dos professores Luís Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo
A
saída do Reino Unido da União Europeia parece ser um episódio nos
eventos que apontam mudanças de grande alcance na dinâmica da economia
mundial. As conexões entre a fratura na União Europeia e o discurso de
Donald Trump são mais evidentes, mas a questão de fundo são as
desconexões provocadas pela globalização, como afirmamos antes do
Brexit:
“O nacionalismo xenófobo de Donald Trump nos EUA, o
referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia, a tensão
entre a Alemanha e a política monetária do Senhor Mario Draghi na Zona
do Euro, e o Japão à beira da recessão e a desaceleração chinesa são
sintomas dos achaques e estertores que acometem o arranjo geoeconômico
erigido nos últimos 40 anos. ”
A globalização provocou uma
verdadeira revolução na estrutura econômica mundial. As transformações
concomitantes não são consideradas nos papers de macroeconomia ou são
apresentadas como processos desconexos.
A articulação entre os
fatores que impulsionaram a expansão da economia globalizada envolve:
1) o crescimento continuado dos fluxos brutos de capitais para o
mercado americano; 2) a migração da produção manufatureira para os
países de baixo custo da mão de obra; 3) o acirramento da concorrência
entre as grandes empresas que impulsiona a nova distribuição espacial da
produção globalizada; 4) a concomitante hiperindustrialização, ou seja,
a aceleração da automação na manufatura, na agricultura e nos
serviços; 5) a formação de bolhas sucessivas de valorização dos ativos
reais e financeiros apoiada na “alavancagem” financeira; 6) a
insignificante evolução dos rendimentos dos trabalhadores, cada vez mais
“precarizados” e menos assalariados; 7) a consequente ampliação das
desigualdades; 8) o endividamento excessivo das famílias nos Estados
Unidos e na “periferia” europeia; 9) a degradação dos sistemas
progressivos de tributação e o encolhimento da proteção social; 10) a
persistência de déficits fiscais alentados e a expansão das dívidas dos
governos.
As economias centrais se contorcem nas angústias da
ruptura do circuito de formação do emprego e da renda. Em seu formato
“fordista” esse circuito era ativado pela demanda de crédito para
financiar o gasto dos empresários confiantes nos efeitos recíprocos da
expansão da renda no conjunto de atividades que se desenvolviam nos
espaços nacionais, a partir da generalização dos métodos de produção
industriais, seja nos serviços ou na agricultura.
Em seu progresso
contraditório, a redistribuição espacial da manufatura e a
hiperindustrialização engendram a precarização, a queda dos rendimentos
dos trabalhadores e, assim, reduzem a capacidade de difusão do gasto das
empresas e desestimulam a demanda. No último ciclo de euforia global,
as famílias submetidas à lenta evolução dos rendimentos, sustentaram a
expansão do consumo na vertiginosa expansão do crédito. A partir da
crise, o circuito de formação da renda na economia como um todo começa a
falhar, dando origem ao período da Grande Recessão.
O
capitalismo “social” e “inter-nacional” do imediato pós-guerra
transfigurou-se no capitalismo “global”, “financeirizado” e “desigual ”.
As políticas econômicas “internas” estão limitadas pela busca de
condições atraentes para os capitais em movimento.
A desarticulação
econômica descortina uma nova fase, marcada por desencontros nas
relações entre o modo de funcionamento dos mercados globalizados e os
espaços jurídico-políticos nacionais ou apenas parcialmente
“internacionalizados”, como é o caso da União Europeia e, pior, da Zona
do Euro. É duvidosa a viabilidade de soluções unilaterais. Como afirmou
Yanis Varoufakis ao justificar sua posição contrária à saída da UE: “é
improvável que sair vá leva-lo aonde você estaria econômica e
politicamente, se não houvesse entrado. ”
O filósofo Slavoj Zizek
recorreu a uma resposta de Stalin nos anos vinte: “Quando perguntaram
ao ditador o que é pior, a direita ou a esquerda, ele respondeu que
‘ambas são piores’. Esta é minha primeira reação à questão de sair ou
não sair da União Europeia.”
Ante o nervosismo da insegurança
econômica, se eleva a polarização política, fomentada pelo crescimento
da massa daqueles que tiveram suas condições de trabalho e vida
precarizadas na senda da arbitragem geográfica de salários, impostos,
câmbio e juros pela finança globalizada. Mike Whitney divulgou estudo
recente do Pew Research Center, estimando apenas 38% dos franceses com
uma visão favorável da União Europeia (em 2004 eram 69%), na Espanha as
opiniões favoráveis representam 47% da população (em 2007 eram 80%).
Os
subempregados e precários estão se lixando para o que pensam os
economistas que alertavam para os riscos do Brexit. Os “irracionais”
querem os empregos de volta. O cenário lembra o “fechamento” das
economias nos anos da Grande Depressão. Vale revisitar o texto do Tariff
Act da lei americana Smoot-Hawley de 1930, que elevou brutalmente as
tarifas e lançou o comércio internacional na derrocada deflacionária.
A
polarização política exprime de forma dramática a ruptura das relações
mais “equilibradas” entre os poderes do “livre mercado” e o resguardo
dos direitos econômicos e sociais dos cidadãos desfavorecidos.
As
presentes dores e convulsões impelidas às democracias ao redor do globo
só receberão sentido histórico se forem capazes de refundar conceitos e
práticas, se puderem reestabelecer nexos entre o povo, a mídia, os
políticos e as políticas públicas. Desconfiamos que o mundo não padeça
apenas sofrimentos de uma crise periódica do capitalismo, mas, sim, as
dores de um desarranjo nas práticas e princípios que sustentam a vida
civilizada.
Não custa um gesto de humildade intelectual e reler o clássico de Karl Polanyi, A Grande Transformação.
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