Esta
é a melhor palavra para descrever as duas primeiras semanas de governo
provisório. Escárnio produzido por ministros com declarações bombásticas
de reformas absurdas e desmentidas no dia seguinte, como se fôssemos
obrigados a viver em um estado contínuo de desorientação e desgoverno.
Escárnio de outros ministros grampeados em conversas nas quais o
apregoado impeachment moralizador se mostra como a cortina de fumaça
para livrar seus pescoços da guilhotina da Lava Jato. Escárnio de um
governo que terceirizou sua política econômica para o sistema
financeiro.
Governando o país como um açougueiro, seu ministro-banqueiro
apresentou ao país um plano de cortes que visa conservar intacto os
lucros de seus amigos banqueiros e os rendimentos de seus sócios
rentistas.
Diante dos desafios da economia, não passou na cabeça de sua equipe
utilizar reservas internacionais, aumentar impostos para os ricos,
recriar a CPMF, taxar lucros bancários ou auditar a dívida pública
brasileira. Nunca na história recente deste país alguém teve a coragem
de apresentar um plano que penalizasse tanto a população mais pobre, que
sofrerá nos próximos anos o resultado da limitação dos gastos em
educação e saúde, além da retração do Estado como agente indutor de
investimentos.
A viabilidade do SUS, um sistema universal para 180 milhões de
pessoas e que cobre um território quase do tamanho de toda a Europa,
encontra-se ameaçada.
Não por outra razão, seu "ministro da Saúde" afirmou, em um lapso de
honestidade, que considerava a manutenção de sua universalidade
inviável. Da mesma forma, aqueles que saíram às ruas em 2013 exigindo
uma "educação padrão Fifa" terão que se contentar com uma "educação
padrão restos a pagar", marcada até mesmo pelo risco de eliminar o piso
nacional de salário para professores.
Enquanto isso, seu ministro da Educação produzia mais um escárnio à
comunidade educacional utilizando seu tempo, que deve estar bastante
livre, para receber "propostas" de grandes estudiosos da educação
nacional como o senhor Alexandre Frota e seus amigos do Revoltados
Online. Ao ser questionado sobre a pertinência de tal encontro, o
referido ministro saiu-se com a afirmação de que "esse ministério
comporta a pluralidade e o respeito humano a qualquer cidadão".
Então que tal começar por explicar por que um dos primeiros encontros
do senhor ministro é com pessoas que nunca pisaram em uma sala para dar
aulas, mas que, com uma discussão esdrúxula de "escola sem partido",
visam exatamente impedir que a pluralidade seja ensinada a nossos
alunos?
Pessoas que não querem que nossos alunos sejam confrontados a
diferentes leituras do mundo, a processos que questionem suas certezas e
a representações e opiniões que desenvolvam sua capacidade crítica.
Segundo esses pilares da educação nacional, nossas escolas estariam
infestadas de marxistas doutrinando nossos alunos. Não por acaso, esse
era o discurso que ouvíamos no início da ditadura militar. Pois foi
diretamente de lá que essa discussão retornou.
No entanto, qualquer um que realmente leu os livros que nossos alunos
recebem nas escolas públicas sabe que eles conhecerão tanto a visão
liberal quanto a visão marxista, descobrirão tanto quem foi Marx quanto
quem foi Locke e Adam Smith. Eles terão visões distintas sobre fatos
históricos complexos e poderão compor um quadro no qual várias matrizes
se apresentam.
Mas talvez essas sumidades queiram mais. Por exemplo, talvez elas
queiram que não se fale da tortura na ditadura militar, que se mostre
que há também "um outro lado" para o qual torturador é herói.
Bem, segundo essa lógica, poderíamos então ensinar os "dois lados" do
nazismo e do "antisemitismo", por que não? E se é para retirar toda
"ideologia" da escola, que tal aproveitar e começar por fechar as
escolas confessionais? Afinal, tem algo mais "ideológico" do que
religião?
Sugiro também impedir toda discussão sobre ética e moral. Pois
conceitos como "liberdade", "autonomia", "diversidade", "igualdade",
"respeito à alteridade" são necessariamente carregados de "ideologia".
Saint-Just afirmou, no calor da Revolução Francesa: "Aquele que
brinca ao ocupar o coração do poder tende à tirania". Vendo o que o
governo interino ofereceu ao país nessas duas primeiras semanas, a única
coisa a dizer é: "Eles só podem estar brincando"
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo |
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