Alguém
acha que a realidade vai mudar apenas com protestos on line ou
cartas enviadas ao administrador público de plantão? Ou que a
natureza de uma ocupação de terra, de uma retomada de um
território indígena ou de uma manifestação urbana não
pressupõe um incômodo a uma parcela da sociedade?
Fiquei
bege ao ler propostas de que manifestações populares em São
Paulo passem a ser realizadas no Parque do Ibirapuera ou no
Sambódromo. Pelo amor das divindades da mitologia cristã, o
pessoal só pode estar de brincadeira! Desculpe quem tem nojo
de gente, mas protesto tem que mexer mesmo com a sociedade,
senão não é protesto. Vira desfile de blocos de descontentes,
que nunca serão atendidos em suas reivindicações porque deixam
de existir simbolicamente. “Quesito: Importância social.
Sindicato dos Bancários, nota 10. Movimento Passe Livre, nota
10. Movimento Cansei, nota 6,5.”
Parar
a cidade, inverter o campo, subverter a realidade. Ninguém faz
isso para causar sofrimento aos outros (“ah, mas tem as
ambulâncias que ficam presas no trânsito” – faça-me um favor e
encontre um argumento decente, plis), mas para se fazer
notado, criar um incômodo que será resolvido a partir do
momento em que o poder público resolver levar a sério a
questão.
Ser
pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou
baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma
saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações.
Rascunhei
em outro texto essas ideias, mas decidi dar prosseguimento a
elas depois de ler os comentários de
um post que fiz, na semana passada, sobre os protestos
contra o aumento das passagens em São Paulo. É trágico como
milhares de pessoas não entendem o que está acontecendo e,
tomando uma pequena parte pelo todo, resumem tudo a
“vandalismo”. Não defendo destruição de equipamentos públicos,
por considerar contraproducente ao próprio movimento, pela
escassez de recursos públicos, por outras razões que já listei
aqui antes. Mas é impossível para os organizadores de uma
manifestação controlarem tudo o que acontece, ainda mais
quando – não raro – é a polícia que ataca primeiro.
E,
acima de tudo, não compactuo com uma vida bovina, de apanhar
por anos do Estado, em todos os sentidos e, ainda por cima,
dar a outra face, engolindo as insatisfações junto com cerveja
e amendoim no sofá da sala.
Muitos
detestam sem-terra, sem-teto e povos indígenas. Abominam a
ideia de que o direito à propriedade privada e ao
desenvolvimento econômico não são absolutos. Mas os direitos
humanos são interdependentes, indivisíveis e complementares. O
que é mais importante? Direito à propriedade ou à moradia? Não
passar fome, locomover-se livremente ou desfrutar da liberdade
de expressão? Todos são iguais, nenhum é mais importante que o
outro. Intelectuais que pregam o contrário precisam voltar
para o banco da escola.
E
direitos servem para garantir a dignidade das pessoas, caso
contrário, não são nada além de palavras bonitas em um
documento quarentão.
Leio
reclamações da violência das ocupações de terras – “um estupro
à legalidade” – feitas por uma legião de pés-descalços
empunhando armas de destruição em massa, como enxadas, foices
e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar fome e
frio, reivindicando territórios que historicamente foram
deles, na maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência.
Ou ainda manifestantes que exigem o direito de ir e vir,
tolhido pelo preço alto do transporte coletivo, e que resolvem
ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o
poder público recue de decisões que desconsideram a dignidade
da população. Todos eles são uns vândalos.
Por
que essa gente simplesmente não sofre em silêncio, né?
Caro
amigo e cara amiga jornalistas, falo com todas as letras: não
existe observador independente. Você vai influenciar a
realidade e ser influenciado por ela. E vai tomar partido e,
se for honesto, deixará isso claro ao leitor. Sei que há
colegas de profissão que discordam, que dizem ser necessário
buscar uma pretensa imparcialidade, mas isso é só metade da
história. Deve se buscar ouvir com decência todos os lados de
um fato para reconstruí-lo da melhor maneira possível. Afirmar
que existe isenção em uma cobertura jornalística de um
conflito, contudo, só seria possível se nos despíssemos de
toda a humanidade.
Isso
sem contar que tentar manter-se alheio a reivindicações justas
é, não raro, apoiar a manutenção de um status quo de
desigualdade e injustiça. Coisa que, por medo, preguiça,
vontade de agradar alguém ou pseudo-reconhecimento de classe,
a gente faz muito bem.
Manifestações
populares e ocupações de terra e de imóveis vazios significam
que os pequenos podem, sim, vencer os grandes. E os rotos e
rasgados são capazes de sobrepujar ricos e poderosos. Por
isso, o desespero inconsciente presente em muitas reclamações
sobre a violência inerente ou involuntária desses atos.
Muitas
das leis desrespeitadas em protestos e ocupações de terra não
foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça
social, mas sim por aqueles que estão na raiz do problema e
defendem regras para que tudo fique como está. Você pode fazer
o omelete que quiser, mas se quebrar os ovos vai preso.
Enquanto
isso, mais um indígena foi emboscado e
morto a tiros no Mato Grosso do Sul. Mas tudo bem. Devia
ser apenas mais um vândalo, não um homem de bem.
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