segunda-feira, 8 de agosto de 2016

O futebol como retrato de uma nação


Por Celso Vicenzi  / Foto Eraldo Peres/AP/O Globo.
Neymar cai, cercado por quatro jogadores do
                    Iraque Foto: Eraldo Peres / AP
Por Celso Vicenzi – 8/8/2016 – Foto de Eraldo Peres/AP/O Globo.
O retrato da seleção masculina de futebol é, de certa forma, o retrato do país
Dizem que uma imagem vale por mil palavras. Nem sempre, mas, às vezes, resume melhor tudo o que se quer narrar. Eraldo Peres, da Associated Press, clicou esta foto, acima, que é um retrato do futebol brasileiro nos dias de hoje. Da queda do futebol. Da aposta no individualismo, que quase sempre perde diante da força coletiva. Falo do futebol masculino, porque as nossas meninas tem demonstrado o oposto disso.
Não fomos capazes de vencer o Iraque (quase perdemos), um país sem tradição no futebol, arrasado por uma guerra e por conflitos de todos os tipos, com 11 atletas em campo que ganham, provavelmente, menos do que o nossos principais craques da seleção, que já foi chamada de “canarinho”, mas que, atualmente, não canta nem encanta, desafina.
Sempre me irritavam as transmissões globais e “outras que tais”, em que os narradores dos jogos de futebol na televisão teciam exagerados e constantes elogios ao craque brasileiro, por seu talento individual, em detrimento do restante da equipe. Em repetidos jogos de nossa seleção, em que era  cristalina a falta de entrosamento e a incapacidade de fazer um jogo mais coletivo, nossos narradores insistiam na aposta da superação individual, na esperança que, com um ou mais craques em campo, sempre se poderia esperar por uma jogada genial que haveria de mudar o placar. Vã esperança, na maioria das vezes. E, quando isso acontecia, não raro, era resultado de uma equipe que também soube jogar coletivamente, dando espaço às improvisações apenas quando elas eram recursos essenciais para se chegar à meta adversária. Nos gramados e na política, parece que estamos sempre em busca de “salvadores da pátria”. Será que não aprendemos nada depois dos 7 a 1 da Alemanha? Bola de pé em pé, jogadores que estão sempre próximos um do outro, passes e tabelas que valem mais do que desorganizadas improvisações, marcação incansável, nenhuma disposição para desistir de uma jogada para simular uma falta. Sim, refiro-me à Alemanha. O trabalho, o esforço e a disciplina se sobrepondo ao “jeitinho". Mas sem abdicar da técnica, afinal, não faço aqui o elogio da mediocridade.
Observe um jogo do campeonato italiano, inglês, francês ou alemão. Não há cera, antijogo, jogador caindo ao menor contato físico e, quando cai, levanta rapidamente. O atleta brasileiro, ao contrário, ao menor contato físico, parece acometido de uma incontrolável vontade de se atirar ao chão. Na maioria das vezes, a teatralização é tão impactante que parece ter sido uma grave contusão. E obriga o juiz a parar o jogo, chamar o departamento médico para, logo em seguida, ficar evidente que o choque não era tão sério quanto o simulado. Talvez Freud explique. Parecem adultos mimados, que exigem permanente atenção para si. O exibicionismo à flor da pele e a força mental tão frágil diante da adversidade.
OK, alguém poderia contra-argumentar que somos pentacampeões do mundo justamente porque nossas estrelas sempre desequilibraram em jogadas individuais, sobretudo no improviso do drible. É meia verdade, porque sempre esquecemos dos “carregadores de piano” tipo Dunga, Cerezzo, Cafu e tantos outros que compensavam o menor talento com uma força de vontade descomunal. E mesmo entre os craques de outros tempos, parece-me que havia menos “estrelismo” e mais vontade de honrar a camisa. Uma derrota incomodava, envergonhava. Hoje o craque, não raro, perde um jogo importante ou um título e sai direto para a balada.
Fama, poder e dinheiro podem ser muito tóxicos para quem não recebeu, desde o berço, a necessária estrutura para lidar com tanto sucesso em tão tenra idade. O glamour vicia. Mas, sobretudo numa profissão em que tudo pode mudar tão rápido e dura tão pouco, o auge e a queda estão mais próximos do que percebem a maioria de nossos craques.
Por razões históricas, boa parte dos brasileiros não valorizam o trabalho. Principalmente entre aqueles que nasceram nas classes média e rica. A meritocracia, no Brasil, quase sempre esconde os apadrinhamentos, os privilégios de classe, as trapaças para chegar ao poder sem passar pela cansativa labuta do suor do trabalho a que tantos brasileiros precisam se submeter, por salários tão ínfimos, para sobreviver.
O esporte coletivo requer a soma de talentos. Mas só o talento não é suficiente. É preciso vir acompanhado de uma boa dose de dedicação, de esforço físico ao grau mais elevado, de um desprendimento para que o brilho do craque seja o coroamento de um trabalho de equipe. De uma imensa capacidade de se doar ao grupo, de renunciar à glória solitária para que um objetivo maior seja alcançado.
Vale a pena assinalar, também, que nos dias de hoje, até os gols costumam ser comemorados individualmente. Não poucos jogadores só aceitam o abraço dos companheiros depois de curtir o seu momento de glória individual com a torcida e com as câmeras, espalhadas pelo estádio.
Por isso, como ter uma outra disciplina mental num país em que a mídia superestima a fama, o poder e o dinheiro de poucos em detrimento daqueles que realmente constroem o país com tanto suor? Como forjar o caráter solidário de um povo num país que estimula tanto a individualidade? Um país que tem enorme dificuldade em aceitar a igualdade? Somos uma nação em que “doutores” são supervalorizados e outros trabalhadores, desprezados. Temos até um regime de prisão especial para quem pôde estudar mais e chegar às universidades – menos de 15% da população adulta.
Nossas elites não convivem bem com a ideia de democracia, onde cada pessoa, independente de seu talento, conhecimento, classe social ou quaisquer outros atributos, tem direito a escolher seus representantes pelo voto livre e universal. A mídia oligopolizada e o enorme poder do capital têm influenciado mais do que deveriam no resultado de eleições. E, se mesmo assim, elas não refletem os desejos oligárquicos de uma elite que se acostumou ao trabalho escravo, às capitanias hereditárias e aos privilégios de classe, ora, é hora então de se partir para mais um golpe, seja pela via militar ou este mais recente e sofisticado, que é midiático-jurídico-policial-político-empresarial.
Tudo isso, que parece tão distante dos gramados, explicam muito sobre o caráter de nossos jogadores da seleção masculina de futebol e os sucessivos resultados recentes de nossos mais dolorosos fracassos, desde, principalmente, a Copa do Mundo de Futebol disputada no Brasil, em 2014.
Nada está perdido, no gramado ou na vida, principalmente se houver uma compreensão profunda sobre as causas dos problemas que nos afligem e impedem que avancemos, coletivamente, como seleção de futebol ou como nação. No esporte, há muitos fatores a explicar derrotas, olímpicas ou não. Entre elas, a má preparação física, a falta de estrutura ou de treinamentos para aprimorar a técnica.
Tudo isso pesa, sim, mas tem peso maior, arrisco-me a dizer, sobretudo no milionário futebol masculino, os fatores psicológicos que forjam o caráter de cada um dos atletas. Craques ou cidadãos anônimos, não nos faria mal uma reflexão sobre os valores com os quais construímos o nosso imaginário nacional, o que exaltamos e o que desprezamos, o que nos aprisiona e o que nos liberta. Nossa matriz indígena, negra e europeia criou uma original e miscigenada cultura que cultiva a alegria mesmo diante de séculos de violência e exclusão. Como diz a letra de Caetano Veloso, cantada na abertura das Olimpíadas, somos um país que “não se entrega não”.
Que assim seja! Porque precisamos derrotar as forças que nos empurram para o atraso. No futebol, na política e na vida.

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