segunda-feira, 4 de abril de 2016

A falsidade do "impeachment" de Dilma

Por Tarso Genro

A crise institucional, política e econômica, que o nosso país está vivendo, inaugura uma nova época política na América Latina e a forma pela qual sairemos dela terá grande influência no destino das nações latino-americanas. Pela primeira vez – pelo menos nos últimos cinquenta anos – a tentativa de interrupção de um processo político, num dos principais países do continente, é ensaiada sem a participação direta das Forças Armadas e sem que as elites conservadoras tenham feito apelos salvacionistas aos militares, como sempre o fizeram, ao longo da formação dos nossos Estados Nacionais.

É verdadeiro que os partidos do Governo adotaram métodos tradicionais de governabilidade e vários dos seus integrantes – como se verifica em alguns processos judiciais – tem o que responder perante a Justiça, mas não é menos verdade que os esquemas de poder, legais e ilegais, que estão aparecendo, são um legado de centenas de lideranças dos partidos oposicionistas que estiveram no Governo, como, aliás, o próprio oligopólio da mídia não consegue mais esconder. O que é falso, porém, em todo este processo, é a outorga ao PT e aos partidos aliados, da responsabilidade de terem inaugurado a corrupção no país. É importante salientar este óbvio, porque ele é a “chave” da exceção não declarada que, aliás, vem mostrando que o país não vivia uma “exceção” permanente, no sentido jurídico e político, que se empresta a este termo, depois da Constituição de 88.

Não podendo sustentar um “impeachment” em função da corrupção e de qualquer outro enquadramento verdadeiro, relacionado como crime de responsabilidade, o complexo midiático dominante, em aliança com velhas raposas conservadoras, algumas delas fazendo parte do Governo (outras aliadas da extrema-direita), encontraram num grupo de Procuradores e num Juiz, que constituiu uma jurisdição nacional de “exceção”, o instrumento burocrático e político mais provável para estimular a derrubada de um Governo legítimo. Um Governo que pode ser fraco e tradicional, mas que tem o mandato da soberania popular e é muito mais decente e honrado do que qualquer Governo, que derrubada a Presidenta Dilma, assumiria hoje, formado pelos grupos mais comprometidos com a corrupção, que estão no atual Governo, em aliança com os setores que, depois de 88, “naturalizaram” a corrupção como forma de governo. Seja pelo “mensalão” mineiro – que se irradiou pelos tempos mais recentes – seja pelos esquemas da Petrobras, que também se projetaram nos Governos posteriores.

A diferença é que nos Governos Lula e Dilma, mesmo com os excessos que são cada vez mais evidentes de direcionamento dos inquéritos, não ocorreram tentativas de bloqueio às investigações. Pelo contrário, a Controladoria Geral da União, o Laboratório de Combate à Lavagem de Dinheiro, as melhorias salariais e tecnológicas da Polícia Federal, o regime de colaboração permanente do Ministério da Justiça com a Procuradora Geral da República, a colaboração do país com os organismos mundiais de combate ao tráfico de drogas e à corrupção e a contribuição permanente, do nosso Governo, com as instituições internacionais de combate ao crime, mostram que o país evoluiu muito, no último período. O combate à corrupção – que hoje é uma demanda impregnada na sociedade brasileira – se deve muito aos governos que sucederam o mandato de Fernando Henrique Cardoso, que, como é de conhecimento universal, quase nada fez nesta área.

Obcecados pela derrubada da Presidenta Dilma, os golpistas e seus aliados na mídia, estão prestes a oferecer um espetáculo – se o “impeachment” vencer – cuja morbidez poderá levar o país a uma crise ainda maior. Criaram um clima de ódio, a partir da construção de um constitucionalismo conservador “alternativo” – paralelo à constituição escrita- que era impensável, há alguns meses: mantiveram prisões sem fundamento legal como instrumento para proporcionar delações premiadas, “reformaram” a Constituição através de um “decisionismo” inaceitável para obrigar o cumprimento das penas antes do trânsito em julgado das sentenças, permitiram (sem encadeamento material) o vínculo meramente político entre as provas para consolidar o alargamento da jurisdição da República de Curitiba e, finalmente -pautados pela mídia oligopolizada- escolheram um alvo prioritário, o Presidente Lula, que passou a ser o prêmio de um concurso entre Procuradores, para decidirem quem teria o “direito” de encarcerá-lo.

Os momentos de crise são propensos à “exceção”, mas a saída da crise e a superação da “exceção” é um problema mais complexo do que simplesmente conseguir um número de parlamentares cooptáveis, para dar aparência de legalidade à derrubada de um Governo. As pessoas, predominantemente das classes médias, que hoje aplaudem o Golpe, estão cientes de que não basta afastar um Governo para, num passe de mágica, resolver uma crise? Estão cientes de que a aliança que se formará – se o golpe prosperar – vai reunir os setores mais apontados como comprometidos com a corrupção, que estão no atual Governo, com os que comprovadamente deram origem aos esquemas do Mensalão e da Petrobras? A ordem da sucessão é Temer, Cunha e Renan que, independentemente de serem culpados ou não, são apontados pela Procuradoria Geral da República em diversos inquéritos.

Mas o maior prejuízo deste processo golpista atípico é a desafeição ao direito e o sentido de irrelevância, com que será marcada a força da Constituição, se consolidado o golpe. Não confiando em obter maioria para, através de uma PEC, obter novas eleições por dentro da ordem (também porque não querem se submeter à soberania popular), o bloco conservador-liberal leva o país a uma sangria sem propósito, através de um falso processo de “impeachment”, estimulando a emergência de um Governo sem apoio social e sem legitimidade política, que só aguçará a instabilidade e a crise econômica.

Quando a “exceção” se converte em nova ordem e não resolve – como não resolverá – os problemas que motivaram a sua emergência, ela, a exceção, se torna pura repressão e o transitório se torna definitivo. Livrar o país desta violência futura é agora: não deixar o golpe se tornar permanente, nem a democracia se tornar provisória.

Há alguns meses, denunciei, sem eco na grande mídia local e nacional – embora com certa repercussão internacional – que a jurisdição nacional implementada pelo Juiz Moro era ilegal e que seus métodos investigativos eram incompatíveis com o direito à ampla defesa e a presunção de inocência e mais, que, ao final, esta campanha “jacobina de direita” contra a corrupção, transformada em espetáculo midiático, poderia redundar numa série de anulações de processos e farta impunidade. O portal UOL, neste domingo (3) publica matéria que aponta a existência desses problemas desde o início das investigações. Vale a pena não ser rebanho.

* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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